O desejo de ser mãe vem da cultura e expectativas sociais, mas tem perdido força, diz psicanalista Vera Iaconelli


A psicanalista Vera Iaconelli é categórica quando afirma: o atual modelo de maternidade está em colapso. Tema de seu novo livro Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução (Ed. Zahar, 253 págs., R$ 49,90), a doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo destaca a impossibilidade de mulheres ocuparem postos de trabalho remunerado – mães solo chefiam 50% das famílias brasileiras -, e ao mesmo tempo serem as responsáveis pela economia de cuidado. A conta simplesmente não fecha. Não por acaso, mulheres têm cada vez menos filhos, o que resulta em um déficit demográfico mundial. Países como o Japão, diz Vera, vendem mais fraldas geriátricas do que fraldas de bebê.

O maternalismo é um discurso que tenta conciliar o inconciliável, a serviço do capitalismo, explica a psicanalista: “Essa ideologia tem uma categoria social, no caso a mulher, colocada para fazer um trabalho invisibilizado, por baixo de todos os outros trabalhos. Então a exploração do proletariado se sustenta pela exploração do trabalho invisível de cuidado. É imputado a esse grupo uma das coisas mais importantes de uma sociedade, que é a sua permanência a partir de próximas gerações, a reprodução do tecido social. E se tiver que pagar por esse serviço, o modelo quebra”.

A ideia do livro veio quando Vera começou a investigar a história da própria família e perceber ali importantes questões de maternidade, e foi reforçada quando ela mesma tornou-se mãe de duas meninas e teve que conciliar isso com a carreira profissional. Ao mesmo tempo, a experiência na clínica, escutando mulheres no divã em situação de sofrimento e adoecimento, a fez ter certeza de que o esgotamento do atual modelo de maternidade precisava ser discutido.

Abaixo, os principais trechos da entrevista com a psicanalista.

MARIE CLAIRE Por que você afirma que o modelo atual de maternidade está em colapso?
VERA IACONELLI
Porque é inexequível. Não conseguimos estar em dois lugares ao mesmo tempo, ou seja, ocupando postos de trabalho remunerado, muitas vezes na informalidade, para sustentar famílias – uma vez que mulheres são chefes de 50% das famílias, e ao mesmo tempo, ter a responsabilidade na economia de cuidados, reprodutiva, que implica cuidar dos filhos, familiares, mais velhos. Como fazer essas duas funções? Pensando que algumas famílias podem usar o serviço de outras mulheres, fazemos um sistema de pirâmide no qual alguém ficará desassistido. Não são apenas as mulheres, mas são famílias que precisam usar um serviço que é sempre feminino. E assim vamos sofrendo uma derrocada da possibilidade de cuidado com as crianças.

MC Como reverter esse quadro de colapso?
VI
Reverter significa reconhecer e entender o problema. Não se trata de ajudar as mulheres, mas a sociedade como um todo diante de um dilema que é nosso. Essa é nossa obrigação enquanto sociedade. Não é responsabilidade só das mulheres. A mudança de mentalidade tem que ser conquistada. Quando pensamos na criação e aplicação de novas leis, creches em empresas, licença parental, por exemplo, poderiam atenuar essas incumbências.

MC Qual a definição de “maternalismo”, que dá nome ao livro?
VI
É um discurso ideológico que tenta justificar que a sociedade deixe o cuidado com as próximas gerações exclusivamente com as mulheres, que isso se trata de uma competência eminentemente feminina. Tenta conciliar isso com o inconciliável: o fato de que as mulheres sempre trabalharam e foram provedoras financeiras. É uma ideologia que serve ao capitalismo, uma vez que cria essa equação na qual uma das coisas mais importantes de uma sociedade, que é a sua permanência a partir de próximas gerações, fique sob inteira responsabilidade do trabalho invisibilizado das mulheres.

Manifesto antimaternalista — Foto: Divulgação
Manifesto antimaternalista — Foto: Divulgação

MC No seu livro, você diz que “crianças morreram como moscas sob os olhares complacentes de pais e mães, sem que o dito instinto materno operasse impedindo tamanha omissão”. Em que momento e por que a infância passa a ser vista de outra forma?
VI
A partir do século 17 e 18, para resolver problemas de ordem sócio econômica, vai surgindo uma ideologia do instinto materno para justificar que mulheres parem de circular no espaço público, socialmente, e se dediquem à prole. Era momento no qual as mulheres não estavam muito afeitas a cuidar da próxima geração, mas coube a elas se responsabilizam mais do que os demais. É um momento histórico muito interessante que a filósofa francesa Elisabeth Badinter apresenta na pesquisa dela.

MC De onde veio a ideia de escrever esse livro?
VI
A ideia veio quando começa a investigar a história da minha família, temos questões importantes de maternidade na nossa história. Também por conta do nascimento das minhas filhas. Ao ter uma carreira profissional e lidar com o nascimento de duas meninas, fui confrontada com uma série de questões ligadas à maternidade – o que tento diferenciar do maternalismo nas minhas experiências como mãe, mas também no atravessamento dessa ideologia que nos adoece. Por fim, minha experiência com a clínica, escutando mulheres no divã sofrendo e adoecendo por crenças e pressões externas, me fez pensar que cabia falar mais sobre isso.

MC A taxa de fecundidade da mulher brasileira é cada vez menor. Esse é um fenômeno mundial? A decisão de não ser mãe tem a ver com a emancipação da mulher ou com uma piora na qualidade de vida das mães? A própria fantasia de ter filhos vem perdendo importância?
VI
O desejo de ter filhos não é um desejo solto no nada, ele também é atravessado pela cultura, por expectativas, reconhecimento social, valor que se dá para isso. Isso tem perdido muita força. A mulher não precisa ser mãe para ser considerada uma mulher. Antigamente víamos essa associação muito mais forte do que hoje. Vemos o déficit demográfico no mundo inteiro em níveis alarmantes.

No Japão, 10% da população tem 80 anos ou mais. É um país que vende muito mais fralda geriátrica do que fraldas para bebês. Isso significa que está se tornando economicamente inviável porque não tem uma geração nova para render a anterior. Teremos o déficit demográfico como sinal alarmante desse movimento no qual a maternidade já está colapsando, não consegue ser protegida, cuidada, e mulheres vão declinando essa tarefa que foi se tornando impossível.

MC Qual o espaço que a mulher e as questões das mulheres têm no seu trabalho como psicanalista? Em que momento você decidiu se voltar a esse tema?
VI
A psicanálise escuta as mulheres no divã desde os primórdios. Foram as primeiras pacientes do Freud. Até hoje nossa clínica é muito mais de mulheres do que de homens na análise. Então essa problemática do feminino, da mulher, da maternidade, do lugar social da mulher, do trabalho, sempre esteve presente na nossa clínica. A psicanálise sempre se voltou a isso, ao pensar a constituição subjetiva dos bebês, que são hegemonicamente tratados por mulheres. Toda a questão da constituição subjetiva, de formação de um sujeito, tem passado por funções de mãe e pai. A clínica psicanalítica é extremamente voltada para a questão da mulher.

MC Diante de tantas dificuldades na maternidade, o que ainda leva uma mulher a decidir ser mãe? É uma decisão irracional?
VI
A decisão de ser mãe ou pai, seja pela experiência do corpo ou por adoção, responde a desejos inconscientes. Vão desde a transmissão de carga genética, transmitir o próprio nome, ter uma linhagem, descendência, ter alguém que pareça com você, que gosta de você acima de tudo, porque as criancinhas estão condenadas a nos amarem. Temos uma série de questões narcísicas – manter um casamento, se sentir mulher, se sentir potente, se sentir homem. Imitar os próprios pais, provar algo a si mesmo, ter alguém a quem cuidar. São desejos legítimos, em grande parte inconscientes, mas nem todos vão justificar que se tenha filhos. Muito frequentemente a pessoa só responde aos ditames da cultura. Muita gente não quer por conta das condições de ter filhos hoje e por ter outras aspirações. Nesse sentido, a decisão pode ser irracional porque os desejos são irracionais.


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