Artista defende exposição sobre terreiros de candomblé e umbanda chamada de ‘entidades esdrúxulas’ por deputada cearense


Frase 'Exu te ama' em exposição cultural em Fortaleza é alvo de deputada conservadora, que pede retirada da mensagem — Foto: Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura/Divulgação
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Frase ‘Exu te ama’ em exposição cultural em Fortaleza é alvo de deputada conservadora, que pede retirada da mensagem — Foto: Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura/Divulgação

Frase ‘Exu te ama’ em exposição cultural em Fortaleza é alvo de deputada conservadora, que pede retirada da mensagem — Foto: Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura/Divulgação

“Nós existimos e nós estamos na resistência. Nós não vamos nos esconder”. A afirmação é de Jean dos Anjos, fotógrafo e antropólogo que produziu o material da exposição “Festa, Baia, Gira, Cura”, lançada no Museu da Cultura Cearense (MCC) em celebração pelos 40 anos do terreiro de umbanda e candomblé Cabana do Preto Velho da Mata Escura, situado em Fortaleza.

A deputada estadual Dra. Silvana (PL) se referiu no documento aos credos de matriz africana como “notadamente pautados por devoções a entidades esdrúxulas” e que os praticantes “desejam é exterminar a religião cristã”.

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Lançada no dia 30 de setembro, a mostra celebra a cultura dos povos dos terreiros como parte da história da religiosidade do Ceará. Ela traz um recorte do trabalho e das pesquisas de Jean dos Anjos, que fotografa, desde 2008, a tradicional Festa de Iemanjá, celebrada no dia 15 de agosto em Fortaleza.

“O trabalho está sendo super bem recebido. Agora, nós não podemos deixar de dizer que nós temos uma sociedade brasileira ainda muito racista”, comenta Jean dos Anjos.

“O racismo estrutural que existe na nossa sociedade ainda faz com que as pessoas não compreendam as religiões e as culturas afro-brasileiras e as culturas indígenas também”, complementa.

Desde 2013, o artista tem registrado também imagens da Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas na Cabana do Preto Velho da Mata Escura. Situado no Bairro Bom Jardim, o terreiro celebra 40 anos em 2024 e é o ponto de partida para a montagem da exposição.

Para o artista, a mostra é um exemplo de políticas públicas que garantam espaço e visibilidade para as diversas expressões culturais e religiosas do povo brasileiro. Como o espaço proposto pelo museu para este tema.

O antropólogo também foi um dos coordenadores do processo para reconhecer a Festa de Iemanjá como um dos patrimônios culturais imateriais da cidade.

“É a única festa pública em um espaço público da umbanda aqui em Fortaleza. Quando a gente pensa em povos de terreiro, nós temos poucas coisas no espaço público. Essa festa foi uma luta muito grande para a gente registrar como patrimônio. Nós temos dezenas de outras festas e procissões, imagens de santos católicos na cidade. E os povos dos terreiros não se incomodam com isso, nós convivemos bem com as outras religiões”, comenta o artista.

Para ele, o incômodo quanto à exposição vem de figuras ligadas a uma visão fundamentalista do cristianismo dentro de um contexto de racismo. Apesar de demonstrar tristeza por estas reações, Jean dos Anjos afirma que não há fundamentação cultural ou artística que justifique as reclamações sobre a mostra.

Ensinamentos que vêm das entidades

Exposição reúne cerca de 300 fotos para celebrar cultura dos terreiros das religiões afro-brasileiras no Ceará — Foto: Jean dos Anjos/Divulgação
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Exposição reúne cerca de 300 fotos para celebrar cultura dos terreiros das religiões afro-brasileiras no Ceará — Foto: Jean dos Anjos/Divulgação

Exposição reúne cerca de 300 fotos para celebrar cultura dos terreiros das religiões afro-brasileiras no Ceará — Foto: Jean dos Anjos/Divulgação

Além de duas salas do MCC, a mostra se expande por espaços externos do Dragão do Mar, como paredes, rampas e varanda. Todo o conjunto tem cerca de 300 fotografias e intervenções com vídeo e frases que evocam uma poética e uma estética dos terreiros.

“Arreda homem, que chegou mulher” e “Não chuta, que é macumba” são outras duas frases que se espalham pelo equipamento cultural.

A primeira, como detalha Jean, faz referência à Pombagira, entidade feminina que representa a liberdade, a luta contra o machismo e o patriarcado. A segunda busca subverter uma expressão considerada preconceituosa.

Como também explica, a menção a Exu busca lembrar a entidade na dimensão do amor. “Exu é o orixá que vem primeiro. É o orixá da alegria, da liberdade, da comunicação. É o orixá que abre os caminhos. É o que mais nos alegra quando pensamos no panteão dos mitos afro-brasileiros”, partilha.

Exposição vista como um marco histórico

Exposição sobre povos dos terreiros ficará disponível até janeiro de 2024 no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. — Foto: Dragão do Mar/Divulgação
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Exposição sobre povos dos terreiros ficará disponível até janeiro de 2024 no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. — Foto: Dragão do Mar/Divulgação

Exposição sobre povos dos terreiros ficará disponível até janeiro de 2024 no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. — Foto: Dragão do Mar/Divulgação

Ter um espaço para as religiões de matriz africana no equipamento público é motivo de celebração para o Babalorixá Linconly de Ayrá, que é professor do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Para ele, os espaços de museus e equipamentos culturais são também educativos e podem ser acessados por todos. Ele classifica este movimento como um processo de reparação histórica e cognitiva diante de um passado de escravização das populações africanas e do legado do racismo estrutural.

“É uma exposição que incomoda? É. Incomoda porque o terreiro não era para estar ali. Não era para estar em lugar nenhum. Historicamente, nós estamos falando de um projeto estruturado de branqueamento. Porque nesses espaços nós temos o trânsito em que a população preta, de terreiro, não era para estar ali. É para estar guardada, escondida, silenciada”, analisa.

Conforme Linconly de Ayrá, o Ceará teve um inventário de 300 terreiros das culturas de matriz africana espalhados pelo território. Ele ressalta que estes espaços trazem relações que vão além das religões: são também espaços de compartilhamento, curas, transmissão de saberes, resistências e formas de perceber a vida.

Outro ponto que o pesquisador destaca é a simbologia de ter a exposição no centro cultural que leva o nome do líder Dragão do Mar, que lutou pela libertação de escravos no Ceará. “O próprio Dragão do Mar hoje é uma entidade que volta na umbanda para orientar pessoas para lutar e se empoderar diante dos problemas que enfrentam no cotidiano”, detalha.

Os estudos de Linconly analisam como as manifestações culturais e religiosas africanas e afro-brasileiras são representadas na educação. Ele destaca a dificuldade em ver os espaços de ensino cumprir a legislação de 2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” nos ensinos fundamental e médio.

Conforme explica, há resistência na sociedade até mesmo para aceitar a proposta de incorporar práticas pedagógicas ligadas aos princípios da capoeira e das manifestações culturais africanas, mesmo sem abordar as religiões.

“O estado não é laico para os cristãos, o estado só é laico para a gente de matriz africana. Quando se vai promover um Pai-Nosso na acolhida das crianças nas escolas, não se tem um estado laico”, critica.

Ainda conforme Linconly, a demonização das entidades e o desconhecimento sobre as religiões afro-brasileiras perpetuam um modelo em que os afro-religiosos são vistos como pessoas que cultuam a maldade. Por isso, destaca a importância de espaços que tragam novas perspectivas e ensinam sobre os terreiros como espaços coletivos de cultura.

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