O que a LALIGA pode ensinar ao futebol brasileiro


Torcedor do Celta de Vigo, o espanhol Daniel Alonso passou a vestir a camisa de outro time em 2017. Naquele ano, ele foi escalado para ser um ponta-de-lança da estratégia de expansão internacional da LALIGA, entidade responsável pelo campeonato de futebol profissional da Espanha.

Desde 2019, o Brasil é o seu campo de atuação. E, fora das quatro linhas, ele vem acompanhando de perto as discussões em torno da criação de uma liga do futebol no País. Uma disputa encabeçada pelos grupos da Liga Brasileira de Futebol (Libra), apoiado pelo Mubadala Capital e o BTG Pactual, e da Liga Forte Futebol (LFF), reforçada por Serengeti Asset Management, Life Capital Partners e a XP.

Em 2022, a LALIGA foi convidada pela LFF para mostrar seu modelo aos clubes brasileiros e está disposta a atuar como uma consultora na criação da liga brasileira. Mas, a partir da sua própria experiência, Alonso entende que é preciso mais entrosamento entre os players envolvidos para que isso aconteça.

“Ter dois blocos comerciais não é o ideal. Todos têm que aceitar as mesmas regras. Do contrário, não tem como dar certo”, diz Alonso, delegado da LALIGA no Brasil, ao NeoFeed. “Se o futebol brasileiro não criar uma liga profissional agora, vai perder mais uma janela de três a cinco anos.”

No caso da LALIGA, alguns números mostram como essa tática pode funcionar. Desde 2013, quando passou a reforçar sua profissionalização, as receitas com direitos de transmissão saltaram da faixa de € 900 milhões para cerca de € 3 bilhões, dos quais, 40% já são gerados fora da Espanha.

Hoje, o campeonato espanhol é transmitido em todo o mundo e, em sua nova temporada, fechou um novo contrato de naming rights com a EA Sports. Antes disso, com esse pacote, a liga atraiu no fim de 2021 um aporte de aproximadamente € 2 bilhões da gestora americana CVC Capital Partners, em troca de uma fatia de 8% de sua receita audiovisual, por um prazo de 50 anos.

Alonso ressalta que, diferentemente do modelo que vem sendo negociado no Brasil, o acordo com a CVC foi fechado por uma fatia menor, e já dentro de uma tese de crescimento, com um produto pronto.

“É diferente. O momento aqui é de construir um produto”, afirma. “Com a marca que é o futebol brasileiro, vai ter público e broadcaster disposto a comprar em qualquer lugar. Mas antes, é preciso melhorar muita coisa.”

Na entrevista, Alonso traça paralelos entre o momento atual do futebol brasileiro e do esporte na Espanha há dez anos, além de dar mais detalhes sobre o modelo, a operação e os planos da LALIGA. Confira:

Como você enxerga o nível de gestão no futebol atual? E como a LALIGA se insere nesse contexto?
Os clubes não podem mais ser geridos com amadorismo. O bolo cresceu muito. Há dez anos, a LALIGA tinha 50 funcionários. Hoje, são 700. Passamos de uma instituição que carimbava licenças para sermos uma multinacional. Mas, arrumamos a casa antes de sair da Espanha. Nessa linha, sempre apoiamos iniciativas como as que estão acontecendo no Brasil agora. A liga é o caminho para profissionalizar o futebol. O que você enxerga hoje no Brasil acontecia na Espanha. E ainda acontece um pouco.

Qual era a situação do futebol espanhol na época?
Os clubes gastavam mais do que tinham e metade estava em recuperação judicial. Isso só mudou com a centralização da venda dos direitos audiovisuais, que incrementou muito a receita. Mas porque o produto melhorou. As câmeras, os gramados, os estádios. É um trabalho de construção. O bolo cresce e todos ganham mais. Mas isso só funciona com um fair play financeiro atrelado e muito rigoroso. E custou muito para que os clubes se adaptassem a cumprir essas regras.

Como foi feita essa adaptação?
No primeiro ano, colocamos as regras para os clubes entenderem como funcionaria. No ano seguinte, viemos com as multas e a ficha caiu. Todos viram que era para valer. E isso gera um ciclo virtuoso. Antes, um dirigente ligava para outro que estava lucrando com algo errado para entender como fazer. A Espanha  também tem malandragem. Agora, é o inverso. Eles denunciam quem está fazendo errado. Não vai ser diferente no Brasil.

Daniel Alonso, delegado da LALIGA no Brasil

Alguma medida específica ajudou a virar essa chave?
O que mudou o jogo foi um decreto-lei; porque os clubes tinham uma dívida absurda com o governo, na casa de € 700 milhões. Em dois, três anos, esse valor foi para € 100 milhões. E, hoje, está em € 30 milhões. Como tínhamos o controle econômico, descontávamos do valor destinado a cada clube e pagávamos essa dívida diretamente.

Quais paralelos você traçaria entre o que houve na Espanha e o cenário atual no Brasil?
Nós tivemos as Sociedades Anônimas Esportivas. Por lei, o esporte profissional tem que ser gerido por uma instituição profissional. No Brasil, a entrada das SAFs é o caminho para a liga. Mas a SAF, por si só, não resolve nada. Se a gestão não muda, só muda o formato. Se o futebol brasileiro não criar uma liga profissional agora, vai perder mais uma janela de três a cinco anos.

“No Brasil, a entrada das SAFs é o caminho para a liga. Mas a SAF, por si só, não resolve nada. Se a gestão não muda, só muda o formato”

Tudo indica que serão formados blocos comerciais e não uma liga. Qual é o risco nesse contexto?
É o cenário mais provável. Pela nossa experiência, a liga é o motor da mudança e é preciso aproveitar essa oportunidade de avanço na gestão. Do contrário, os clubes vão seguir gastando com os elencos e pouca coisa vai mudar. E o controle do campeonato seguirá com a CBF, sem a melhora do produto.

Essa questão do produto está ficando em segundo plano?
Pelo que eu sei, está sendo tratada, mas não como algo prioritário. O que estão fazendo é adiantar receita. É o que fizemos com a CVC Capital, mas por uma fatia menor e já dentro de um modelo de crescimento, com o produto pronto. É diferente. O momento aqui é de construir um produto. E a prova de que o potencial é gigante é o fato de ter muitos fundos interessados. Com a marca que é o futebol brasileiro, vai ter público e broadcaster disposto a comprar em qualquer lugar. Mas, antes, é preciso melhorar muita coisa.

Qual é o papel e o envolvimento que a LALIGA pretende ter nesse cenário?
Fomos convidados em 2022 pela Liga Forte Futebol para explicar nosso modelo aos clubes. Mas não somos investidores. Não vamos comprar nem gerir nada. Estamos à disposição para uma eventual consultoria e para ambos os lados. Mas tem que haver um acordo. Ter dois blocos comerciais não é o ideal. Todos têm que aceitar as mesmas regras. Do contrário, não tem como dar certo.

No caso da LALIGA, esse modelo teve resistência de algum clube?
Com exceção de Real e Barça, todos enxergaram que seria melhor. E foi bom para Real e Barça, porque eles tiveram assegurado o que já ganhavam e com a perspectiva de crescer a receita.

Como essa receita evoluiu para os times de ponta e os clubes menores?
O Real tinha uma receita anual na casa de € 110 milhões contra € 10 milhões de times como o Osasuna. Hoje, esses clubes ganham € 55 milhões e, o Real, cerca de € 150 milhões. Falamos isso aos clubes brasileiros. Todos ganham mais. Hoje, por exemplo, a receita internacional do campeonato brasileiro é mínima. Em um país que é sinônimo de futebol e com um campeonato dos mais competitivos, o que tem um valor absurdo. Para o nosso presidente, o Brasil pode ser top cinco mundial em receita.

A divisão das receitas é um dos temas polêmicos no Brasil. Como isso funciona na LaLiga?
No nosso modelo, 50% das receitas são distribuídas de forma igualitária. Depois, temos dois blocos de 25% cada em que avaliamos não apenas o desempenho esportivo, mas questões como público nos estádios, tamanho da torcida e audiência na TV. Você tem que recorrer aos dados, ir nos detalhes.

“A entrada das SAFs é o caminho para a liga. Mas a SAF, por si só, não resolve nada. Se a gestão não muda, só muda o formato”

E no caso da CVC Capital. Como esse aporte está sendo distribuído?
O clube pode gastar 15% em elenco, 15% em pagar dívidas e os 70% restantes em infraestrutura. E precisa apresentar um plano, com geração de receita. Seja para fazer um centro de treinamento, um estádio novo, reformar o antigo ou desenvolver uma estratégia digital. Aí, um comitê aprova e vamos liberando os recursos. O que garante que o clube vai gastar para crescer e ser mais autossustentável.

Já há exemplos de projetos que vão ser tocados com esses recursos?
O Valencia quer fazer um novo estádio. É um projeto que estava parado há 14 anos. O Betis está fazendo um CT espetacular e vai erguer um estádio maior. O Atlético de Madrid vai fazer um mega CT, que terá como contrapartida uma estrutura esportiva absurda para a prefeitura. E o Celta de Vigo está construindo uma cidade tecnológica, com espaço para startups.

Em contrapartida, como você rebate as críticas de que, no campo, a LALIGA ainda é dominada por Real Madrid e Barcelona?
Os dados falam. Nos últimos 10 anos, há uma alternância entre Real Madrid, Barcelona e Atlético de Madrid. No mesmo período, o Bayern de Munique, por exemplo, ganhou 10 títulos na Bundesliga. Na Premier League, o Manchester City ganhou 6 títulos. Na França, o PSG dominou. Na Itália, até pouco tempo, a Juventus ganhou nove títulos seguidos. Então, quando se fala da “espanholização”, não seria uma má notícia. Há uma classe intermediária crescendo.

Quais clubes você destacaria nessa faixa?
O Sevilla é o maior campeão da Europa League. O Villareal foi semifinalista da Champions League e ganhou a Europa League. O Real Sociedad é um exemplo de gestão de base, de como crescer de forma sustentável. Assim como o Betis, que lota e está reformando seu estádio. Tudo isso é resultado desse crescimento das receitas e da melhora na gestão. Mas leva tempo. Não acontece de hoje para amanhã. E a Espanha é do tamanho de São Paulo. O Brasil tem oito grandes clubes em grandes cidades e outros com muita história e torcida. Com essa competitividade, já sai em vantagem.

Qual é a receita hoje da LALIGA e o quanto desse faturamento vem de fora da Espanha?
No audiovisual, antes da centralização dos direitos, girava em torno de € 900 milhões e 80% das receitas eram nacionais e 20% internacionais. Hoje, estamos perto de € 3 bilhões e, localmente, atingimos o patamar máximo. A via de crescimento é o internacional, que já responde por 40%.

Em quantos países a LALIGA é transmitida atualmente?
Em todos. Nem todos os contratos são gigantes, mas você vai somando e é aí que vem a visibilidade e a receita. Vamos adaptando conforme o momento de cada mercado. A Índia, por exemplo, é gigante, mas não é o país do futebol. É do críquete. Lá, nós optamos por colocar de graça, com o Facebook, durante dois anos. E conseguimos medir quantas pessoas assistem. Depois, mostramos os dados para um broadcaster que dizia que não havia adesão e fechamos um contrato.

Como o contrato de naming rights com a EA Sports se encaixa no momento da operação?
É uma mudança total pra alcançar as novas gerações e ser mais próximo do mundo digital, dos games. O grande desafio hoje é captar esses adolescentes. É difícil eles ficarem assistindo 90 minutos de um jogo. E aí apareceu a opção da EA Sports, que já era patrocinadora e evoluiu para ser o naming rights.

Qual é o prazo e o valor desse contrato?
O contrato é de cinco anos. Não posso revelar os valores, mas são muito elevados. Ampliou o que tínhamos com o Santander. E faz a ponte com esse público que, às vezes, fala que não gosta de futebol, mas joga futebol no videogame. O número de usuários que a EA Sports tem cadastrados e que compram cards de jogadores é absurdo. Há interesse. Mas precisamos nos adaptar. Então, entre outras coisas, estamos mudamos nosso app e criamos o LALIGA Studios, para produzir mais conteúdos no digital.

Que tipo de conteúdo?
A gente já vinha trabalhando com a Amazon, em documentários de clubes e jogadores históricos. Vamos fazer com a Netflix também. E estamos desenvolvendo projetos com influenciadores e mini-docs com canais de redes sociais, fora da TV, em parcerias na Twitch, enfim, onde o público mais jovem está. Vamos adaptando isso a cada mercado. Não para todos, mas os mercados estratégicos.

“Com a marca que é o futebol brasileiro, vai ter público e broadcaster disposto a comprar em qualquer lugar. Mas, antes, é preciso melhorar muita coisa”

Quais são os mercados estratégicos para a LALIGA?
Estados Unidos é o principal. Com o hype da Copa do Mundo, o futebol vai crescer muito no país. Acabamos de assinar um acordo de longo prazo lá com a ESPN e fizemos uma joint venture com a Relevent Sports, que nos garante uma receita e vai ajudar nessa expansão. Replicamos esse modelo na China e no mundo árabe, outros dois mercados bem relevantes para nós.

Como o Brasil está posicionado nesse mapa?
O Brasil também é estratégico. Além da Espanha, é o país onde temos mais seguidores. São 2,7 milhões no Instagram e R$ 2,5 milhões no Facebook. Mas ainda temos muito a ser feito aqui.

Quais são as prioridades?
Temos um projeto estratégico de marca, que coloca a metodologia da LALIGA em escolinhas próprias e clubes sociais. Assumimos a formação de professores e dessas crianças no futebol. Hoje, são 10 escolas no Brasil e a ideia é crescer num ritmo de 10 unidades por ano. Temos trabalhado também em conteúdos específicos para o país. E vamos impactar no presencial, com uma série de eventos. Já temos parceiros regionais, mas estamos negociando com marcas locais. Esse é o caminho para crescer aqui.


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