A chegada da comissão técnica chefiada por Tite fez soar no Ninho do Urubu um alarme semelhante ao que desperta hóspedes de hotéis no meio da noite: “Atenção, isto não é um exercício”. A diferença na mensagem é que a ordem não é para evacuar o local, ao contrário. A exigência de classificação para a próxima edição da Copa Libertadores impõe a presença de todos, não apenas de corpo, e os dois primeiros jogos sob a nova direção mostraram que é provável que o ano de 2023 não terminará sem que o Flamengo jogue futebol de acordo com a capacidade do elenco que tem.
Tite é uma dessas figuras do esporte cujas influências são sentidas antes mesmo de que se apresentem num determinado local. Enquanto a negociação entre seus representantes e o Flamengo transcorria, todo o departamento de futebol do clube já sabia que tipo de pessoa e profissional poderia trabalhar ali, de que forma este técnico se conduz diariamente e o que é necessário para que as coisas andem bem sob seu comando. À diferença do que se deu com treinadores com formação estrangeira que não se chamam Jorge Jesus, o fator “vamos ver o que acontece” desta vez não se aplica, porque a estatura de Tite no futebol brasileiro gera um raciocínio imediato: a questão não é quem será o técnico do time em 2024, mas quem estará com ele. Um cenário que favorece a adesão ao trabalho.
Para além da representatividade do ex-treinador da seleção brasileira e de sua capacidade de se relacionar com os futebolistas, a escolha sobre como jogar é um capítulo central para o sucesso de uma equipe que, em todo o ano, não fez meia dúzia de atuações compatíveis com seu potencial. No futebol, o rendimento coletivo deve sempre aparecer na conta do técnico, motivo pelo qual as recentes experiências negativas – por atrito e/ou incompatibilidade de estilo – com treinadores que tentaram aplicar seus modelos a um grupo de jogadores muito peculiar deixaram um ensinamento: há casos, e isso se percebe mais claramente na América do Sul, em que o DNA futebolístico de um elenco deve indicar o caminho a seu técnico, e não o inverso.
Na seleção brasileira, para tratar de seis anos de maneira simplificada, Tite partiu de uma ideia que permitia a jogadores se associarem tendo a bola como referência, sem orientações rígidas sobre espaços a serem ocupados. Lesões de figuras que tinham papéis fundamentais às vésperas da Copa de 2018 o levaram a navegar para uma proposta mais próxima do que a maioria dos convocados conhecia em seus clubes europeus, em que o posicionamento dos jogadores orienta os movimentos ofensivos. Se o objetivo de conquistar um Mundial não foi atingido, o período na seleção contribuiu para ampliar o repertório de Tite, o que possibilita que ele pense suas equipes com diferentes olhares.
As feridas deixadas pelos trabalhos de Domènec Torrent, Paulo Sousa, Vítor Pereira e Jorge Sampaoli levam a uma cena que não é difícil imaginar: a cúpula do futebol do Flamengo, com olhares consternados e mãos juntas em gesto de prece, suplicando a Tite que evite o “jogo posicional” (mesmo sem o devido conhecimento do que se trata), pedido que um contingente significativo da enorme massa de torcedores provavelmente aprovaria. As atuações contra Cruzeiro e Vasco mostraram que Tite está atento ao que o time precisa agora, com os jogadores de que dispõe e os objetivos que ainda estão em pé.
O começo do trabalho também deixou claro que os futebolistas, por tanto tempo enxergados apenas como ególatras que demandam satisfação permanente e ignoram o profissionalismo, são plenamente capazes de se comprometer com uma ideia e, no caminho, talvez, resgatar uma temporada que não agrada a ninguém.