O futebol, ao mesmo tempo em que leva as pessoas ao êxtase, leva também ao cúmulo da agressividade. Pegue um jornal esportivo qualquer. O que ele faz? Leva ao paroxismo a rivalidade e a oposição dos clubes, porque para ele não é só uma competição esportiva, é um âmbito de realização e frustração das aspirações. A minha eleição me marcou muito. A torcida estava do lado de fora. Gritaram e pediram que fosse até lá. Fiquei muito tocado porque eram meninos jovens, entre 14 e vinte e poucos anos. Eles começaram a me agarrar de uma maneira que alguém só agarraria o pai ou a mãe. Isso revela que a torcida organizada preenche uma função que a família não preenche mais, que as outras relações de convivência também não conseguem preencher. Na verdade, isso faz emergir uma dimensão perversa da sociedade. Eles poderiam curtir os clubes, apaixonar-se de uma maneira mais serena, mas é aquela coisa ansiosa, parece que o clube é a única coisa que merece seu afeto no mundo.
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Sobre seleção brasileira, minha análise é a de que ela se distanciou do que somos culturalmente. Nosso futebol está longe de contar, no campo, o que somos de melhor. O futebol de hoje fala de um Brasil institucional, conservador, branco, embevecido por arrogância e poder. O senhor concordaria?
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Desconfio de que o declínio do jogo da bola no Brasil guarde parentesco com a “racionalização” da formação dos jogadores. Expulsos da espontaneidade das várzeas e das praias pela urbanização eversiva, os futuros jogadores foram metamorfoseados em autômatos com a ajuda dos burocratas das escolinhas de base. Lembro-me de alguns que passaram dos campos pelados da várzea para os gramados do futebol oficial, com direito a nome no jornal e esperança de chegar à seleção brasileira. Julio Botelho, o Julinho, Djalma Santos, Carbone, Idário, Waldemar Carabina, Rubens, Homero. Nos anos 50 e 60, São Paulo de Piratininga se transmutava de capital da província para a metrópole. Meu olhar de menino e adolescente, fanático pelo dito esporte bretão, via São Paulo como um imenso campo de futebol, interrompido por impertinentes avenidas e arranha-céus. Jogava-se futebol nas ruas, nos becos, nos quintais, em todos os cantos. Nos fins de semana, sentado nos barrancos, eu assistia à bola dos adultos correr solta. Nos dias úteis, a molecada cabulava aula e se juntava nos terrões que simulavam campos de futebol. Os gazeteiros ora celebravam os gols marcados, ora se estapeavam por causa de faltas controvertidas. Socos e pontapés eram desferidos com lealdade e até mesmo com amizade. Tudo acabava bem, descontadas as fraturas de nariz.
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Que soluções poderiam existir para o nosso futebol além das SAF?
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Minha cara Milly. Busquei em meus alfarrábios considerações que prestei, anos atrás a seu colega de colunismo Juca Kfouri. Os clubes brasileiros são instituições híbridas, ao mesmo tempo amadoras e profissionais. Essa é a sua “natureza” atual, decorrente de sua formação histórica. Qualquer tentativa de executar projetos tecnocráticos de engenharia social, que não tome em consideração essa “natureza” contraditória, está fadada ao fracasso. Também fracassarão os cometimentos que pretendam eliminar sumariamente os adversários e oponentes. Esse tipo de “solução final”, promovida por alucinados em momentos históricos recentes, não só é eticamente condenável, mas também política e administrativamente contraproducente, como o comprovam as experiências recentes de mandonismo nos clubes. O Palmeiras iniciou um caminhada em direção a procedimentos mais democráticos, ainda que essa ousadia possa custar, como vem custando, arreganhos de incompreensão voluntária e episódios de manipulação de informações. Vamos combinar: a paixão pelo clube promove atos de generosidade e doação pessoal e, ao mesmo tempo, de deprimente mesquinharia. É humano, demasiado humano. Nesse ambiente é de prudência respeitar a sabedoria do reformismo chinês: atravessar o rio saltando sobre as pedras. Se você ainda não sabe, sou um reformista radical, posição que assumi depois de examinar com cuidado as experiências totalitárias do século 20. É preciso ter mais coragem e persistência para reformar do que para inflar a alma com proclamações de rupturas improváveis.
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O que o Palmeiras representa para o senhor?
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