O terceiro dia da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica)é realizado neste sábado (28)e, sem sombra de dúvidas, é o dia mais lotado do evento. Nomes como Eliane Marques, Eliane Potiguara e a mexicana Ximena Santaolalla marcam a programação da Festa. As mesas e palestras discutem as poéticas afroindígenas no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia. A 11º edição do evento conta com cobertura local da Gama em Cachoeira, na Bahia. Abaixo, você acompanha os principais destaques do dia.
Uma conversa internacional sobre memória e identidade
A última mesa do sábado (28) na Tenda Paraguaçu teve um gostinho internacional. A escritora mexicana Ximena Santaolalla e o autor panamenho Carlos Wynter Melo participaram da conversa intitulada “Diversidade, arte e democracia – Nada sobre nós, sem nós”, que contou com a mediação do pesquisador Vércio Gonçalves e tradução simultânea entre português e espanhol.
Ao público brasileiro, Santaolalla contou um pouco sobre seu romance, que aborda a ditadura da Guatemala durante a década de 1980, o mais devastador regime ditatorial do continente americano. A escritora ressaltou a importância de se jogar luz aos problemas que costumam ser invisibilizados. “Há muito preconceito no México contra imigrantes da América Central. Para mim, era importante apontar que essas pessoas não estão visitando o México de férias, há uma razão para isso”, ela afirmou, se referindo ao processo de fuga do país americano por conta da brutalidade do regime ditatorial. “Se não criamos uma memória histórica, não há como a democracia existir.”
Já Wynter Melo também falou sobre memória, mas relacionou o conceito a sua própria identidade. “Todos nós temos uma vida finita, mas a literatura é uma extensão dessa vida. Quando me perguntam de onde eu venho, volto aos dizeres dos escritores panamenhos.” Para o autor, esses escritores lhe ajudaram a encontrar um senso de si e a construir sua própria identidade. “Eles me ensinaram a responder essa pergunta e eu gosto de pensar que estou ensinando os outros com meus livros. Estamos criando memórias.”
Gabriela Bacelar/Gama Revista
As exposições fixas da Festa
A Flica também contou com espaços de exposições permanentes durante o evento, dentre eles, a Exposição Coletiva Axenianas Máscaras Cotidianas. O arte-educador Carlos Victor, um dos expositores, explicou que esse projeto é desenvolvido junto aos educandos do Projeto Axé, no grupo de artes visuais. A exposição é itinerante e participou do evento a convite da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia.
As máscaras são fruto de uma pesquisa dos educandos no Museu Afro-Brasileiro em Salvador, e foram confeccionadas para celebração do Novembro Negro. A produção é baseada na utilização de materiais recicláveis como embalagens, pratos descartáveis e outros plásticos. Como desdobramento da exposição, os expositores propuseram uma oficina de confecção de máscaras com o público da Festa.
“As mascaras têm um significado simbólico muito especifico de cada lugar e de cada pessoa, elas possuem significado para os nossos educandos, é uma releitura. Nessas máscaras, nós temos elementos da contemporaneidade que estão investidos de significados coletivos e individuais”, afirma Carlos Victor.
Gabriela Bacelar/Gama Revista
A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte marca presença no evento
Quem conhece a cidade Cachoeira, na Bahia, sabe da importância que a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte tem para a história da cidade. As irmãs também estavam presentes na Flica. Gama conversou com a Yalorixá do Ylê Axé Yoromym, Joselita Sampaio Alves, ou Mãe Zelita, que já participou de outras edições da Festa. Neste ano, ela estava vendendo a obra “Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte: Devoção Mariana no Recôncavo da Bahia” (Solisluna Editora, 2021), de Gustavo Falcón, como forma de angariar recursos para a festa anual da organização. Para Mãe Zelita, os festejos da Irmandade da Boa Morte e a Flica são os dois grandes eventos de Cachoeira. “Eles atraem um grande público capaz de prestigiar a cultura que a cidade oferece”, diz a Gama.
Daniel Vila Nova/Gama Revista
Um espaço colorido e infantil na Flica
Para as crianças, não há maior deleite na Flica do que se aventurar pelo espaço conhecido como “Fliquinha”. Hospedado em um dos casarões da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), o local é colorido, com faixas na cor do arco-íris, e oferece atividades divertidas para os pequenos criarem e construírem brinquedos artesanais. Um corredor, iluminado por diversas luzes coloridas e com uma amarelinha pintada no chão leva até um imenso auditório onde apresentações musicais das mais diversas são realizadas.
Um documentário sobre os heróis e heroínas esquecidos da Bahia
No palco “Geração Flica”, o público assistiu “Bicentenário da Independência: Heróis e Heroínas da Liberdade”, um documentário que conta as histórias dos protagonistas das lutas da Independência do Brasil na Bahia. Após a exibição, o produtor do filme, Ricardo Ishmael, e Vladimir Costa, diretor geral da Fundação Pedro Calmon, bateram um papo sobre o longa, que está disponível no Globoplay. “Quero saber quem são as heroínas e os heróis apagados pela história”, afirmou o jornalista, ao comentar o que motivou a produção do documentário.
Daniel Vila Nova/Gama Revista
Intérprete de Libras fala sobre a importância da inclusão
Quem acompanha a Tenda Paraguaçu nota que, em toda mesa, um grupo de intérpretes Libras se alterna e participa da conversa, traduzindo as falas dos convidados para a Língua Brasileira de Sinais. Uiaracy Maria Santana Vieira, de 30 anos, é uma dessas intérpretes. Para ela, que não é da Bahia, o que chama atenção na Festa é a multiculturalidade presente no evento. “Eu não sou daqui, sou de Recife. Estou vendo muitas pessoas indígenas, muitas pessoas negras e nem todas são do nordeste. Essa união de culturas diversas em um só lugar é encantadora. Nós estamos contando a nossa história”, ela afirma.
Ao falar sobre a importância da acessibilidade, a tradutora se emociona e diz que trabalhar na Flica tem sido a realização de um sonho. “A acessibilidade dá oportunidade das pessoas com deficiência participarem efetivamente de um evento cultural desse porte”, ela diz. “Com a tradução, você está incluindo de fato essas pessoas. Elas têm a oportunidade de entender a potência das histórias que estão sendo contadas”, finaliza.
A brasilidade dos diferentes Brasis
As atividades na Tenda Paraguaçu começaram com a mesa “Escrevendo sobre os Brasis do fim do mundo”. A conversa foi entre a poeta Eliane Marques, a escritora e jornalista Paulliny Tort e o escritor Yaguarê Yamã e mediada pelo também escritor Heider da Silva Oliveira de Assis, que recepcionou os convidados com uma piada: “Bem-vindos à Bahia, aqui é proibido falar baixo!”
Ao falar sobre as diferentes versões de um mesmo país, os autores buscaram relacionar suas produções com as suas origens. “Eu me forjei na fronteira como mulher negra, como poeta e como psicanalista”, afirmou Marques. “Nós criamos nossas narrativas a partir da nossa origem, de onde viemos e de quem somos. Podemos até romper com isso, mas sempre a partir dessa história originária.”
Ao falar sobre suas marcações sociais, Tort ressaltou algo importante: “É o outro que me vê dessa forma.” Para ela, todas suas narrativas partem sempre dos recortes que a atravessam. “Eu sou de Goiânia. Esse lugar de origem marca o início de tudo. Pode também marcar uma ruptura, uma continuidade ou as duas coisas. Mas, o meu ponto de partida sempre será o planalto central.”
Por fim, Yaguarê Yamã falou sobre a dificuldade que muitos brasileiros enfrentam ao não conseguirem se identificar. “O brasileiro precisa se conhecer, precisa dessa identidade”, ele afirma. “E é isso que eu procuro trazer no meu trabalho, fazer com que as pessoas se reconheçam. Talvez você esteja escondido e precise se achar.” Para ele, ao invés de querer ser como os outros, o brasileiro tem de reconhecer quem ele é. “Isso é brasilidade.”