[RESUMO] Em visita à Ucrânia quase três anos depois do início da invasão russa, repórter conta como a cultura local segue vibrante, sobretudo na capital Kiev. Entre bombas, destruição de patrimônios históricos, proibição do ensino da língua ucraniana em algumas regiões e execuções deliberadas de artistas, o país resiste às tentativas de eliminar sua identidade. Governo e ONGs planejam denunciar Rússia por genocídio cultural.
Passa um pouco das 8 da noite e as pessoas vão chegando e se posicionando em mesas longas de madeira, enfeitadas como se ali fosse haver uma quermesse ou festa popular parecida. Do bar, saem coquetéis e garrafas de vinho e cerveja.
Estamos na região central de Kiev, capital da Ucrânia. O local se chama Squat 17b, e foi bombardeado no início da invasão russa, em fevereiro de 2022. Hoje é um ponto de encontro da noite local.
É verdade que não muito longe dali há soldados entrincheirados, militares e civis morrendo todos os dias e uma população de 37 milhões de pessoas que vive como pode entre um e outro alerta de bombardeio russo.
Os avisos chegam por meio de alto-falantes e de notificações que apitam no celular. A recomendação é correr para os abrigos quando soam os alarmes. Porém, depois de tantos meses de guerra, na maior parte das vezes o alerta é ignorado em Kiev.
Assim se vive na capital ucraniana quase três anos após o início da guerra. A bela cidade, com suas igrejas de domos dourados e parte de sua arquitetura medieval convivendo com enormes edifícios residenciais da era soviética, resiste. E seus habitantes tratam de levar uma vida normal, ainda que os escombros de prédios atingidos por bombas e as sirenes sejam uma presença constante.
A efervescência cultural, protagonizada principalmente pela juventude, porém, é algo que salta aos olhos. “Viver e divertir-se é uma forma de dizer que vamos resistir até a vitória e que temos uma identidade totalmente distinta da do invasor”, diz à Folha Alina Yamorlenko, 24, que se preparava para assistir ao show daquela noite.
A juventude ucraniana vive uma fase difícil, mas ao mesmo tempo parece estar apegada à ideia de demonstrar resiliência e de desenhar sua própria identidade, enquanto, por que não?, se diverte. “A vida pode ser só hoje”, completa Alina. Quem pode negar sua frase, com os drones russos sobrevoando nossas cabeças?
Logo, a banda DvaTry (que significa DoisTrês) começa a tocar uma mescla de pop com música folclórica ucraniana. As mulheres usam vestidos longos e tradicionais, exibindo colorida maquiagem; os homens usam chapéus e bigodes longos. Até as 23h, a festa não para.
Esta época do ano é aproveitada para eventos ao ar livre, pois o inverno ainda não chegou com tudo. Todavia, as coisas têm hora para acabar. O toque de recolher, à meia-noite, faz com que o espaço e a cidade se esvaziem.
Muito diferente das regiões em que ocorre conflito armado constante, mais ao leste do país, Kiev apresenta o contraste de ser uma metrópole viva em meio a tanta destruição causada até aqui.
Há bombardeios, mas mais esparsos, e muitos edifícios sendo reparados, assim como novas lojas de roupa e novas livrarias com cafés —estas últimas bastante frequentadas por jovens, com intensa programação de debates e lançamentos. Se olharmos desavisadamente, diríamos que estamos numa bela capital europeia como tantas outras.
Foi possível, por exemplo, armar em um desses locais um encontro com fotógrafos de guerra, que tinham acabado de chegar do front com os olhos vidrados e assustados de quem está claramente em sentido de alerta há mais de dois anos.
Ali, num lounge, com café e ambiente acolhedor, contaram seu desespero. Paga-se cada vez menos por seus trabalhos, uma vez que outros conflitos e crises internacionais novas tomam o espaço no noticiário. Mesmo assim, não podem baixar a guarda e perder a grande foto de suas vidas ou a possibilidade de expor episódios marcantes deste conflito.
Eles se autoexigem uma atenção de 24 horas ao dia, e o resultado é visível em seus rostos. “Cheguei a um ponto em que praticamente estou de acordo com que somente se distribuam minhas fotos, grátis mesmo, só para que as pessoas não se cansem de saber das histórias de guerra ucraniana, que conheçam nosso sofrimento, que saibam que nada aqui melhorou só porque sai menos na TV. Porque o ciclo midiático é cruel. Por um tempo queriam tudo daqui, agora parece que o assunto cansou, que outros conflitos ganharam lugar. Não estamos vivendo igual ao início da guerra, estamos num estágio ainda mais grave, e se o mundo não quiser olhar para cá mais, estamos perdidos”, diz o fotógrafo Stas Kozljuk, 32.
Ele e seus colegas passam horas olhando os aplicativos de celular que mostram onde devem cair os próximos mísseis russos. “Vamos para lá correndo. São poucas as agências internacionais que podem se interessar pela imagem, ou podem ser muitas dependendo da situação, então temos que estar lá antes dos outros.”
O interesse pela atual literatura ucraniana é visível em novas redes de livrarias, como a Sens, a maior delas, que acaba de abrir uma nova loja no centro, com três andares. Além dos livros, há espaço para tomar algo e mesas para reuniões ou para trabalhar com laptops.
Por lá não se veem livros de autores russos. “Existe um renovado interesse em conhecer os escritores locais, em deixar o idioma russo de lado e de valorizar o ucraniano”, conta a jornalista e editora Bohdana Neborak. “O circuito de festivais literários ficou ainda mais intenso, e há uma busca tanto por ficção como por não ficção e poesia.”
Entre as bancadas da Sens, uma estava dedicada à literatura latino-americana, com obras de Gabriel García Márquez e de Jorge Luis Borges traduzidas ao ucraniano.
Mas, está correto tirar da vista de todos os grandes clássicos russos? A próxima geração de ucranianos não conhecerá Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov? “Obviamente, quem os buscar os encontrará e poderá ler esses textos. Mas não é o que está acontecendo, nem se trata de um legado que queremos celebrar agora”, diz Tetyana Teren, da Pen Ukraine, ONG que reúne escritores, jornalistas e intelectuais nacionais e estrangeiros para promover o intercâmbio e mostrar solidariedade com a causa ucraniana.
“Reconheço a importância desses clássicos, mas eu, e vários escritores e pessoas da minha geração, nos sentimos mal e até culpados ao ler obras russas. Afinal, estamos sendo atacados e mortos por russos todos os dias e há muitas gerações. Talvez com o passar do tempo seja possível fazer essa dissociação da obra de arte com as ações dos homens, mais ou menos como a dissociação que se fez da obra de Wagner e do nazismo, décadas depois da Segunda Guerra Mundial. Mas, por muito tempo, era uma música apenas associada ao nazismo.”
“Nós estamos num tempo diferente, ainda vivendo a guerra, há notícias tenebrosas todos os dias, amigos e pessoas conhecidas morrendo no front. Não há como se sentir bem falando russo ou lendo ou consumindo cultura russa”, acrescenta Teren. “Fomos educados debaixo de uma forte influência da propaganda russa e estamos vivendo um processo de de-russificação de tudo, idioma, hábitos, gastronomia, consumo de cultura.”
Ela menciona como exemplo o clássico filme do diretor russo Serguei Eisenstein. “A propaganda soviética usou o cenário ucraniano para muita arte de propaganda. É o caso da escadaria de Odessa no filme O “Encouraçado Potemkin” [1925], um filme sovietico que usa um cenário ucraniano.”
O fato é que 26 milhões de cópias de livros em russo foram excluídas das bibliotecas e das livrarias do país entre 2022 e 2023, e não se sabe se haverá interesse em retorná-las em algum momento.
Entre os autores que são hoje reivindicados está o poeta nacional Taras Shevchenko (1814-1861), conhecido também como um humanista e um dos fundadores da literatura moderna ucraniana. Há estátuas em homenagem a ele em todo o território.
A Folha encontrou uma delas, no vilarejo de Borodyanka, por onde as forças russas tinham passado. Ela está meio torta e com sinais de tiros na face do escritor. O mais cruel é que se localiza no que foi um playground para crianças que viviam em conjunto habitacional atingido por um míssil.
Várias construções caíram, e as que estão de pé deixam à mostra o que se fazia em cada casa naquele momento. Há cozinhas, salas, móveis e objetos, cortados ao meio ou caídos por terra.
Outra escritora, esta sim mais contemporânea, e que virou ícone da resistência cultural do país, é Victoria Amelina. Aos 37 anos, ela morreu vítima de um ataque de míssil russo a uma pizzaria na cidade de Kramatorsk.
Era 27 de junho de 2023, quando viajava com um grupo de escritores e intelectuais colombianos. Eles haviam percorrido zonas ocupadas pelos russos e, no final do dia, pararam para comer algo na RIA Pizza, um restaurante muito popular entre estrangeiros na região. Mal tinham feito os pedidos, porém, caiu um míssil russo sobre o estabelecimento.
“Ela morreu na minha frente, uma imagem que não sai de minha cabeça até hoje”, conta à Folha o colombiano Sergio Jaramillo, que tem longa experiência em conflitos. Ele foi o líder das negociações dos acordos de Paz da Colômbia com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas), firmado em 2016.
Hoje, muito por conta do que ocorreu naquele dias, Jaramillo segue agarrado à causa “Aguenta Ucrânia”, para a qual tenta chamar a atenção de escritores, intelectuais e políticos da América do Sul.
Amelina era conhecida dos colombianos, pois havia sido convidada ao Hay Festival de Cartagena no ano anterior, e estava viajando pela Ucrânia para promover o livro de outro escritor assassinado, Volodymyr Vakulenko, quando foi morta.
As mortes de escritores, assim como a destruição do teatro de Mariupol, dos museus de arte e história, na Galeria Queens e no Museu Taupo, na mesma cidade, ou da destruição do centro histórico de Odessa, ou do Museu de Ivankiv, que possuía a coleção de uma conhecida pintora modernista, Maria Primachenko, são alguns entre as centenas de milhares de crimes de guerra contra a cultura.
O governo ucraniano e algumas ONGs querem relatar esses casos ao Tribunal Penal Internacional, talvez ainda neste ano, como exemplo de genocídio cultural.
Na cidade de Kherson, por exemplo, vídeos de diversos moradores mostram a retirada de obras de dentro de um edifício hoje vazio. Muitos eram objetos de alto valor histórico e arqueológicos, segundo as autoridades. Também foram destruídas as sedes do Museu de Arte e do Teatro Acadêmico Nacional de Ópera e Balé, ambos em Kharkiv.
Não há números consolidados ainda da magnitude desses crimes, mas diversas instituições mapearam informações que ajudarão a compor o relatório.
No ano passado, segundo a Unesco, foram destruídos total ou parcialmente 240 sítios culturais na Ucrânia. Em junho deste ano, relatório do Ministério da Cultura afirmou que já são 1.080 as instalações culturais destruídas ou danificadas desde o início da guerra.
A ONG Rafael Lemkin realizou 56 expedições a 12 regiões atacadas ou ocupadas por russos e inspecionou cerca de 784 locais culturais. A conclusão do documento é que “ataques ao patrimônio cultural também compõem o crime de genocídio propriamente dito e causam dano a toda a sociedade”.
Também de acordo com o relatório do Ministério de Cultura, 116 museus e galerias de arte foram destruídos desde 2022 até hoje, além de 131 bibliotecas públicas. Segundo informação do governo, perderam-se 187 milhões de exemplares de livros escritos em ucraniano, roubados e destruídos pelos russos.
Junto a Trust Hounds, a Lemkin Society trabalha contra o tempo para dar forma a seu caso, o que não é fácil devido à falta de acesso a locais hoje em situação de disputa.
Toda informação sobre um ataque a um bem cultural, recebida via internet, vídeos e comunicações vindas do interior é checada. “O processo é lento, e por mais que trabalhemos rápido, a destruição continua e tem sido mais acelerada do que a nossa ação”, diz Halina Chyzhyk, diretora-executiva da Lemkin Society.
Um caso emblemático a ser apresentado ao Tribunal Penal Internacional é o do sacerdote Stepan Podolchak, da Igreja Ortodoxa de Ucrânia, assassinado em fevereiro de 2024. O religioso tinha acabado de realizar uma missa em ucraniano e vinha sendo pressionado a viajar a Moscou para pregar lá, em russo. Negou-se a ir, e foi executado a tiros.
Outro é o do já citado Volodymyr Vakulenko, autor de livros infantis, que se negou a deixar a pequena cidade onde vivia, Izuim, na região de Kharkiv, quando os russos a tomaram. Passou meses trabalhando num sótão, com pouca água potável e uma dieta composta por batatas. Conseguiu terminar um livro sobre a ocupação russa até ser descoberto. Seu corpo foi encontrado meses depois, em um bosque, junto ao de mais de 200 habitantes da região.
Na lista dos crimes de guerra está também o assassinato do acordeonista e diretor de orquestra Yuriy Kerpatenko, por militares russos, em setembro de 2022. Ele foi executado após negar-se a realizar um concerto de música russa promovido pelos invasores.
Na denúncia por genocídio cultural, as ONGs envolvidas na coleta de material elencam também os ataques à educação escolar ucraniana. Na Crimeia e em outros territórios ocupados, não se ensina mais o ucraniano. Livros didáticos foram trocados na metade dos cursos, deixando muitas crianças confusas. Mais grave, segundo contaram autoridades a jornalistas estrangeiros em Kiev, é que crianças dessa região foram levadas para receber educação em Moscou.
Na pequena vila de Yahidne, no distrito de Chernihiv, no norte da Ucrânia, próximo à fronteira com a Belarus, percebe-se o choque de culturas e as armas mais sutis que se usam em um genocídio, além das mais evidentes.
Foi ali, numa noite fria de março, que os moradores foram surpreendidos pela chegada das tropas russas, que cortaram água, luz e qualquer comunicação com o resto do país. Eles avisaram que a Ucrânia havia sido tomada pelos russos e que o melhor era aceitar e obedecê-los. Como foram destituídos de seus celulares e levados ao cativeiro, não sabiam se aquilo era verdade ou não.
De casa em casa, os soldados iam, pediam comida, depois ordenaram rapidamente que seus habitantes juntassem trouxas de roupas, e os encaminharam ao subsolo de uma escola local.
Hoje, Ivan Polhui, 67, antes funcionário do colégio, mas que também viveu os dias de cativeiro, mostra o local para os estrangeiros. “Não sabíamos nem quando era dia nem quando era noite, como íamos saber a verdade sobre a guerra? Nos davam jornais com propaganda, com notícias de que os russos estavam ganhando do lado de fora.”
No chão fétido, permanecem ainda hoje estão esses papéis, roupas de crianças, cobertas, trapos, louças sujas de excrementos. No ambiente, um cheiro de morte. Das 368 pessoas presas ali por 27 dias, 70 eram crianças. No total, morreram 17. “Um pouco antes de morrerem, as pessoas ficavam tendo alucinações, batiam nas paredes, nas coisas, era necessário imobilizá-las.”
No sótão, havia um canto onde faziam suas necessidades. Os prisioneiros recebiam permissão para enterrar seus dejetos do lado de fora. Quando pediam aos russos papel para higienizar o local, recebiam páginas arrancadas de livros em ucraniano. “Assim vocês já vão esquecendo isso daí”, diziam, segundo Polhui.
Em um dos aposentos do subsolo da escola, segundo os prisioneiros, havia 35 adultos e nove crianças. Todos deviam ficar de pé, de outro modo não haveria espaço suficiente. O horror que o local transmite contrasta com os desenhos coloridos das crianças, ainda marcados nas paredes, de casas, florestas, jogos de futebol.
O ar ia se tornando cada vez mais irrespirável, e os russos resistiam dias antes de permitir que se retirassem cadáveres para serem enterrados do lado de fora. E riam dos prisioneiros: “Vejam, agora tem mais espaço para vocês”. Polhui agora diz que teme por seus netos, pois “essas lembranças podem atrapalhar muito o desenvolvimento deles em suas vidas”.
A prolongada guerra deixa pontos de interrogação também para grandes instituições, como museus e cinematecas.
Yuliia Vahanova, diretora do Museu Khanenko, de arte europeia e asiática, em Kiev, conta que não encontrou um protocolo seguro para cuidar de suas obras. “Podemos mantê-las escondidas um tempo, mas não indefinidamente. Não é a mesma estratégia que se aplica a um museu que foi atingido por alguma catástrofe natural e que depois poderá ser recomposto”, diz.
“Também acreditamos que a instituição pode tomar atitudes diante do que estão tentando fazer com nossa cultura”, acrescenta, citando as mostras já realizadas com as paredes totalmente vazias, para que as pessoas entendam como fica um país que perdeu sua cultura.
“Por ora, pensamos que a melhor maneira de proteger nossas obras é guardá-las bem aqui na Ucrânia mesmo, sem que o inimigo saiba a localização, ou mandar para o exterior para mostrar o que vem ocorrendo aqui na Alemanha, na Áustria e em Londres”, diz.
Desde que a guerra teve início, o artista britânico conhecido como Banksy realizou sete obras, de modo escondido, como é comum, em prédios públicos e em pleno centro das cidades da Ucrânia. Viraram uma atração.
Próximo à estátua do poeta Shevchenko, em Borodyanka, há um grafite em que se representa uma luta desigual de judô, em que uma criança derruba um adulto, talvez sugerindo que a Ucrânia seja essa força mais frágil derrotando o inimigo mais poderoso.
Outro mural, no centro da cidade, mostra dois garotos brincando de balanço na estrutura de metal usada para frear tanques, enquanto nas ruínas de um edifício bombardeado em Irpin Banksy desenhou um ginasta fazendo exercício de ponta-cabeça.
“No momento em que a Rússia decidiu invadir a Ucrânia e passou a negar nossa existência como país independente, já podemos falar de genocídio de um modo geral. Os crimes de guerra contra o idioma, contra os monumentos, as igrejas, as obras de arte, a música e a literatura, ou seja, o que chamamos de genocídio cultural, são uma parte dessa tentativa de genocídio. Apenas eliminar as pessoas não completa um genocídio, mas isso ocorre quando também se elimina seu modo de pensar, de se expressar, de se sentir”, diz Halina Chyzhyk.