Uma cultura de paz: golpe, aqui? Nunca mais


Ainda estou aqui. É novembro de 2024. Na manchete dos jornais, a Polícia Federal indicia um ex-presidente militar democraticamente eleito e seus braços direitos por tentativa de golpe e assassinato do atual presidente, também democraticamente eleito, cujos braços direitos e seus antepassados lutaram contra a ditadura civil-militar brasileira.

Faz 60 anos desde o golpe que instaurou o “Estado de Exceção” no Brasil, promovendo a perseguição, a tortura, o desaparecimento e a morte daqueles e daquelas que se opunham ao governo. Faz alguns dias que saímos das salas de cinema com os olhos marejados pela grandiosidade da atuação de Fernanda Torres, representando Eunice Paiva, e Selton Mello, interpretando Rubens Paiva, que nos levaram até o âmago das angústias de uma família frente à dor de esperar um companheiro e um pai retornar dos porões da ditadura. Retorno esse que nunca aconteceu, restando à angústia diluir-se com a ação do mestre tempo.

Se tantos presos políticos nunca mais voltaram para dar um abraço em seus familiares, os militares, por outro lado, sempre tentam mais uma vez impor a sua vontade à força, carregados pela sombra do autoritarismo. Mesmo que isso custe a vida de um presidente eleito, de seu vice e do presidente do Superior Tribunal Eleitoral. O túnel do tempo retorna para dignificar a memória de cada vítima dos horrores deste período, que foi, após o regime escravocrata, o mais obscuro de nossa história.

No filme Ainda estou aqui, a justiça é celebrada por Eunice Paiva (Fernanda Torres) com um atestado de óbito e com o trabalho exemplar da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela ex-presidenta Dilma Rousseff – que fora torturada, é importante lembrar, por um sujeito homenageado pelo ex-presidente hoje indiciado pela Polícia Federal.

Agora, a justiça que merecemos enquanto nação, é, no mínimo, a condenação de todo e qualquer golpista. O que aconteceu em 1964 no Brasil não pode, jamais, se repetir. Nossa tão jovem e ferida democracia pede que a olhemos pelas lentes do cuidado, com uma ética do cuidado, como afirma bell hooks. Cuidar da democracia brasileira é dever civil de cada um de nós. Falo aqui enquanto filha de um ex-militante trotskista, preso político após a instituição do AI-5 no nosso país.

Se nós divergimos politicamente, ideologicamente, intelectualmente, pouco importa. O que importa mesmo é termos a liberdade de nos respeitarmos em nossas diferenças. Sentarmos à mesa com um copo de cerveja gelada, brindarmos a beleza da vida que ainda nos dá rasteiras nas calçadas. Romântico? Burguês? Talvez. Mas ainda é melhor do que desejar a morte de quem o povo brasileiro escolheu para liderar nosso projeto de país. Desejemos, enfim, democracia. Memória e justiça. Uma cultura de paz. Golpe, aqui? Nunca mais.

* Jornalista e filha de um preso político da ditadura-civil militar brasileira

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko



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