
Dos muitos “riscos profundos para a sociedade e a humanidade” que preocupam os especialistas em tecnologia com o avanço da inteligência artificial (IA), a propagação de imagens falsas é algo com o que os usuários diários da internet estão familiarizados.
Deepfakes – vídeos ou fotografias em que o rosto ou o corpo de alguém foi alterado digitalmente para que pareça estar fazendo algo que não está – já foram usados para espalhar desinformação política e pornografia falsa .
Essas imagens falsas são normalmente maliciosas e usadas para desacreditar uma pessoa. Quando se trata de pornografia deepfake, a grande maioria das vítimas são mulheres .
Uso de imagens falsas para praticar abuso usando a internet
A IA generativa – tecnologia usada para criar textos, imagens e vídeos – está facilitando a realização de abusos sexuais baseados em imagens falsas na internet. Um novo conjunto de leis no Reino Unido criminalizará o compartilhamento de pornografia deepfake.
Mas com a atenção dada à IA e aos deepfakes, não podemos esquecer como tecnologias menos sofisticadas podem ser utilizadas como ferramenta de abuso, com consequências devastadoras para as vítimas.
Quando comecei a pesquisar o emprego da tecnologia em relacionamentos abusivos, o uso de imagens falsas (deepfakes) era apenas um pontinho no horizonte. O meu trabalho centrou-se no papel dos smartphones e no abuso de mulheres que fugiram de relações de controle.
Os agressores de violência doméstica usavam a tecnologia para aumentar o alcance do seu poder e controle sobre os seus parceiros, uma abordagem moderna às táticas de abuso que foram usadas muito antes de os smartphones estarem em todos os bolsos.
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Celulares são usados como meio de monitoramento
Os telefones celulares podem ser usados diretamente para monitorar e controlar, através de rastreamento GPS ou bombardeando a vítima com textos, vídeos e chamadas de voz.
Uma participante da minha pesquisa explicou como seu parceiro abusivo usava o telefone para acessar suas redes sociais, enviando fotos ofensivas via Instagram e WhatsApp.
Quando ela saía com os amigos, ele primeiro mandava mensagens de texto, ligava e depois fazia videochamadas constantemente para verificar onde ela estava e com quem estava.
Quando a participante desligava o telefone, o companheiro entrava em contato com seus amigos, bombardeando-os com mensagens de texto e ligações.
Ela sentiu-se demasiada envergonhada para combinar novos encontros com seu grupo de amigos e por isso parou de sair.
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Violência doméstica via internet
Outras pessoas em situações semelhantes podem ser excluídas do convívio social, se os amigos quiserem evitar ser contactados pelo agressor. Este isolamento social é uma parte frequente da violência doméstica e um importante indicador de relações de controle.
De acordo com a instituição de caridade contra violência doméstica Refuge, mais de 72% das pessoas que utilizam os seus serviços relatam abusos envolvendo tecnologia.
Os celulares são uma porta de entrada para outros gadgets, através da “internet das coisas” – dispositivos que estão ligados à web e capazes de trocar dados.
Essas ferramentas também podem ser transformadas em armas pelos abusadores. Por exemplo: utilizar celulares para alterar as definições de temperatura num termostato doméstico, criando extremos de uma hora para a outra.
Confusas com isso, as pessoas buscam explicações de seus parceiros e muitas vezes são levadas a acreditar que isso deve ser fruto de sua imaginação.
Técnicas de gaslighting como esta fazem as vítimas questionarem a sua própria sanidade, o que mina a confiança em sua capacidade de julgamento.
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‘Panóptico’ moderno
Com o clique de um botão, os celulares permitem uma vigilância sem precedentes de outras pessoas. No bolso de um agressor, eles podem ser usados para manter o controle sobre parceiros atuais e antigos a qualquer hora e – se o sinal permitir – em qualquer lugar.
Isto confere aos agressores um poder de onipotência, fazendo com que as vítimas acreditem que estão sendo vigiadas, mesmo quando não estão. Essa ação nos traz à mente o trabalho do filósofo do século XVIII Jeremy Bentham, que introduziu o conceito de “panóptico”.
Bentham propôs um sistema prisional “perfeito”, onde uma torre de guarda fica no centro, cercada por celas individuais. Isolados uns dos outros, os prisioneiros veriam apenas a torre – um lembrete constante de que estão permanentemente vigiados, embora não possam ver o guarda dentro dela.
Jeremy Bentham acreditava que tal estrutura resultaria na autovigilância dos prisioneiros até que no final não fossem necessárias fechaduras ou barras.
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Celulares são os novos ‘panópticos’
Minha pesquisa mais recente mostra que os telefones celulares criaram dinâmicas semelhantes em relacionamentos abusivos. Os telefones assumem o papel da torre e os agressores, os guardas dentro dela.
Neste ‘panóptico’ moderno, as vítimas podem estar por aí, visíveis para estranhos, amigos e familiares. No entanto, devido à presença do telefone, sentem que ainda estão sendo vigiadas e controladas pelos seus parceiros abusivos. Como disse um participante:
“Você sente que não há liberdade mesmo quando está fora. Você se sente trancado em algum lugar, não tem liberdade, alguém está controlando você.”
Os sobreviventes de abusos continuam a se monitorar mesmo quando os abusadores não estão presentes. Eles agem de maneiras que acreditam que irão agradar (ou pelo menos não irritar) seus agressores.
Este comportamento é frequentemente visto pelos outros como estranho e facilmente descartado como paranoia, ansiedade ou problemas de saúde mental mais graves.
O foco passa a ser o comportamento da vítima e ignora a causa – comportamento abusivo ou criminoso por parte do parceiro.
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Imagens falsas na internet, vigilância, gaslighting e abuso
À medida que a tecnologia se torna mais sofisticada, as ferramentas e estratégias disponíveis para os abusadores continuarão a evoluir. Isto ampliará o alcance dos agressores e apresentará novas oportunidades de vigilância, gaslighting e abuso.
Até que as empresas tecnológicas considerem as experiências das sobreviventes de violência doméstica e incorporem mecanismos de segurança na concepção dos seus produtos, o abuso continuará à vista de todos .
Para quem está preocupado com a segurança e o abuso relacionado à tecnologia, esta página de conselhos da Refuge, a maior instituição de caridade contra abusos domésticos do Reino Unido, oferece boas orientações.
Sobre a autora
Tirion Havard é professora de Serviço Social da London South Bank University e sua pesquisa se concentra na Violência Contra Mulheres e Meninas, incluindo violência doméstica (especificamente controle coercitivo), abuso tecnológico e exploração criminosa infantil.
Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons
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