Na Escola Municipal O’Higgins, em Bangu, na Zona Oeste, antes de começarem a estudar, os alunos do professor Moisés Machado passam por um espelho. Ao lado dele, um cartaz reforça o poder da palavra e incentiva os estudantes a repetirem para si frases motivacionais, como “Eu sou lindo (a)”, “Eu sou próspero (a)”, “Eu sou inteligente” e “Eu sou feliz”. Na sala, as referências à cultura, à história e a personagens negros estão por toda parte.
Num determinado momento da aula o docente, que é negro, como a maioria dos estudantes, indaga: “Onde vocês veem mais pessoas parecidas com a gente, na Europa ou na África?”. Todos escolhem a segunda opção. Moisés resolveu combater o racismo e aumentar a autoestima da turma fazendo com que as crianças, na faixa dos 10 anos, aprendam mais sobre a própria história com lições que aproximam a África do Brasil.
— É importante essa reconexão ancestral com a África, para que eles se compreendam como seres potentes e protagonistas de suas próprias histórias — diz o professor do ensino fundamental, que criou um alfabetário associando as letras às iniciais dos nomes de personalidades negras, como Abdias Nascimento, Glória Maria e Pelé.
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Moisés Machado faz a diferença num universo onde a educação antirracista, obrigatória há 20 anos, ainda é, como se pode observar neste Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, exceção. Desde 2003, a Lei 10.639 obriga a inclusão nos currículos escolares do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Porém, segundo especialistas, as poucas iniciativas existentes partem de práticas isoladas de alguns professores.
— O Brasil, em termos do direito à diversidade, e aqui a gente está falando das étnico-raciais, tem uma das melhores legislações. O problema é a implementação e a prática — afirma a professora Sônia Beatriz dos Santos, do Departamento de Ciências Sociais e Educação da Uerj.
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Para ela, a necessidade desse tipo de ensino está explicitada no resultado de uma pesquisa realizada pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica, (Ipec). A maior parte dos dois mil entrevistados (38%) disse ter sofrido racismo no ambiente escolar.
— A escola é uma das primeiras instituições com que os jovens têm contato, onde eles sofrem esse racismo estrutural, institucional e individual. Então, a gente considera que é preciso implementar a lei em todas as disciplinas e não só na história. Tem que ser um trabalho transversal — cobra Érika Frazão, professora adjunta de relações étnico-raciais na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Aulas como a do professor Moisés ajudam a alterar esse quadro e contribuem para transformar a vida de estudantes como Daniella Curcino de Oliveira, de 11:
— Achava que só pessoas brancas e de cabelo liso eram bonitas. Olhava no espelho e não me aceitava. Isso mudou com o Tio Moisés. Foi libertador — conta a menina, que depois disso ficou até mais vaidosa.
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Ela disse também que perdeu o receio de contar na escola que era adepta de religião de matriz africana.
Pérola Magalhães, de 16 anos, aluna do 1º ano de dança da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, da Faetec, é outra que teve a autoestima elevada ao participar de um projeto na escola:
— Conhecer nosso passado e dos nossos ancestrais é fundamental, não só pelo conceito histórico, mas também pela autoestima.
Pérola integra o grupo de 30 alunos que se reúne semanalmente para a leitura do livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que conta história de Kehinde, uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. A iniciativa é da professora de História Janete Ribeiro, que busca adotar experiências dentro e fora da escola como forma de implementar uma educação antirracista.
— A partir dos estudos da grade curricular, mergulhamos na literatura preta, visitamos exposições, museus, para levar para a escola essas experiências — relata.
Livros e hip-hop
A literatura preta também é o foco de Luciane Silva, professora na Faetec de Quintino e no Instituto de Educação Carmela Dutra, em Madureira. Além de privilegiar autores negros como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto em suas aulas, ela criou o e-book “Enegrecendo o currículo com a literatura afro-brasileira”. A publicação, vendida na internet por R$ 23,50, traz indicações de livros para auxiliar outros docentes. A professora também usa o perfil no Instagram (@profluportugues) para fazer indicações.
— Nosso currículo precisa ser enegrecido — diz.
Na Baixada Fluminense, a boa prática antirracista parte da educadora Marize Conceição. Desde 2015, seu projeto “Encontro de meninas discutindo identidade” leva às escolas da região palestras e oficinas, como a de hip-hop.
— A ideia do projeto é trabalhar a identidade racial e discutir a identidade de gênero para que as alunas se empoderem e, no lugar em que estejam, saibam se posicionar — explica Marize.
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Uma pesquisa dos institutos Alana e Geledés mostrou que sete em cada dez secretarias municipais de Educação do país não cumprem a Lei 10.639. No Sudeste, o Estado do Rio aparece em situação inversa da tendência nacional, sendo que apenas 21 dos 92 municípios fluminenses responderam os questionários.
No Rio, o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha garante que cumpre a legislação e que a representatividade chegou até ao material didático. A rede tem 660 mil alunos, dos quais 57,41% são pretos ou pardos, segundo dados da secretaria.
— A gente tem a promoção da educação antirracista como pilar central do nosso trabalho — assegura Ferreirinha, acrescentando que uma das ações de sua gestão foi a criar a Gerência de Relações Étnico Raciais, que tem entre suas funções identificar a ampliar boas práticas.
A Secretaria estadual de Educação informou que, além de cumprir a lei, promove iniciativas de cunho antirracista.
Agenda Dia de Zumbi
Cortejo pela Consciência Negra:
As ruas da Praça Onze serão tomadas hoje pelo Cortejo da Tia Ciata, a partir de meio-dia, embalado por sambas, ijexá, maracatus, jongos e rodas de capoeira. O grupo sairá do Terreirinho Tia Ciata, passará pela Avenida Presidente Vargas com uma grande reverência de rufar de tambores à estátua de Zumbi dos Palmares. Em seguida, o afrocircuito entra na Avenida Marquês de Sapucaí e retorna para a Praça Onze para o encerramento com uma grande roda de samba e participação de diversos músicos e sambistas. Confirmaram presença no cortejo os grupos Fina Batucada, Cia de Mystérios, Rio Maracatu, Tambores de Olokun, entre outros.
Quilombo Sacopã:
Ao som do Samba Sacopã, a feijoada é servida à vontade (R$ 50) a partir das 14h (entrada a R$ 20). O dia começa hoje com uma roda de conversa com Bia Nunes, presidente da Associação Estadual das Comunidades Quilombolas (às 10h), e roda de jongo. O espaço fica na Rua Sacopã 250, na Lagoa.
Viva Zumbi:
O evento comemorativo marcado para o centro de Niterói foi adiado devido ao tempo instável.