A cultura brasileira não aceita mais paradoxos? Temos que ser só aliados iguais ou inimigos mortais?


Segundo o pensador francês Gilles Deleuze, em A lógica do sentido, “o sentido é sempre duplo sentido e exclui a possibilidade de que haja um bom sentido da relação. Os acontecimentos nunca são causa uns dos outros, mas entram em relações de quase-causalidade, causalidade real e fantasmagórica que não cessa de assumir os dois sentidos”. E prossegue Deleuze: “o que tem um sentido tem também uma significação, mas por razões diferentes das que fazem com que tenha um sentido. O sentido não é, pois, separável de um novo gênero de paradoxos, que marca a presença do não-senso no sentido”.

O autor brasileiro Itamar Vieira Junior Foto: Victor Moriyama/The New York Times

Acolher o paradoxo parece fundamental para qualquer discussão, afinal, como afirma o intelectual multifacetado Donaldo Schüler, “tudo é enigma”. Vejamos um exemplo atual, que tem chamado a atenção: o romancista Itamar Vieira Júnior afirmou recentemente, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, que “é muito comum em certo meio — entre acadêmicos e intelectuais da classe média urbana — considerar que pessoas que não passaram por educação superior, lavradores, quilombolas e indígenas seriam incapazes de produzir intelectualidade”.

Com essa denúncia, Vieira Júnior começou o seu texto que analisava o livro A Terra Dá, a Terra Quer, de Antônio Bispo dos Santos, publicado pela editora Ubu. Onde estaria o paradoxo dessa afirmação? Estaria no fato de que a editora de Antônio Bispo dos Santos, Florencia Ferrari, sócia-fundadora da Ubu, é cientista social e doutora em Antropologia Social pela USP, tal como ela se apresenta no site da editora?

É óbvio que a passagem pela academia lhe deu estofo intelectual, de modo que, graças à sua sólida formação, ela ampliou sua visão de literatura, arte etc., o que a levou a publicar dos Santos. A propósito, os editores em geral não seriam todos intelectuais, dedicando o seu tempo a refletir sobre os problemas sociais, culturais, estéticos etc. do seu tempo?

Uma curiosidade: por que só os “acadêmicos e intelectuais da classe média urbana” foram mencionados na sentença do escritor best-seller? Os professores universitários, especialmente, têm sido “acusados”, por vezes, de poder se pronunciar com mais liberdade sobre literatura, arte etc., porque não precisariam do “mercado” para sobreviver. Aqui, destacaria mais um paradoxo: por não precisarem do “mercado”, espera-se que esses professores se deem ao luxo de colaborar na imprensa e no mundo editorial apenas por amor à literatura… Não é raro que um professor universitário traduza um livro, organize determinada antologia ou escreva um alentado ensaio gratuitamente; tampouco é raro que esse mesmo acadêmico pague para ver reeditada uma obra de outro que ele admira como leitor e estudioso.

Se por um lado esse trabalho voluntário é bem-vindo e louvável, promovendo a publicação de textos importantes, por outro lado ele poderá, no final, ser prejudicial ao mercado de trabalho. No mundo crucial da tradução, por exemplo, um acadêmico que venha a abrir mão de remuneração não estaria concorrendo deslealmente com o tradutor que vive da profissão? Elencar tais paradoxos não nos permite decifrar o enigma da cultura e do mercado, mas podem manter viva a discussão sobre os papéis do autor, do editor, do crítico e do estudioso da literatura.

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Em um ensaio recente, intitulado Literatura engajada, Leyla Perrone-Moisés, professora emérita de Literatura Francesa na Universidade de São Paulo, destaca um outro paradoxo ao tratar, especificamente, dos estudos decoloniais / descoloniais. De acordo com a acadêmica, esses estudos “tendem a negar qualquer contribuição positiva dos antigos colonizadores”. É claro que a ensaísta faz uma ressalva e lembra que a colonização europeia (não só ela) “é responsável por inúmeros crimes, e seus malefícios têm efeito até os dias de hoje”, ressaltando que, “extintas as colônias, é legítimo o desejo de descolonizar as culturas remanescentes”.

No entanto, diz Perrone-Moisés, “também é preciso reconhecer que, mesmo involuntariamente, a colonização europeia deixou algum benefício cultural nas antigas colônias . Embora o objetivo dos colonizadores fosse o de dominar culturalmente, na prática, o ensino de suas línguas e literaturas ampliou o repertório dos colonizados”. E o paradoxo segue, pois o conhecimento de línguas e culturas hegemônicas, primeiramente forçado, pode “ser subvertido como fator de libertação”.

A professora alerta, por fim, que, “evidentemente, essas línguas europeias são adotadas pelos ex-colonizados não por serem ‘superiores’, mas por serem meios de comunicação mais poderosos “. Esse ensaio me remeteu a um texto bastante instigante e oportuno de Denilson Baniwa, o qual integra o livro Joseca Yanomami, que acompanhou a mostra de desenhos de Joseca Yanomami, no MASP, em 2022.

No texto, intitulado “Arte para amansar o coração napë: cosmologias do contato e encantamento do povo da mercadoria”, Baniwa cita a antropóloga e tradutora estadunidense Catharine V. Howard, para quem “os povos indígenas podem até dar a impressão de imitar a cultura dominante ao adotar as roupas dos brancos, querer seus bens, reverenciar seus deuses ou empregar sua retórica para criticá-los, mas a resistência é sempre uma questão híbrida e contraditória, tanto na forma quanto no conteúdo.

Na verdade, essa qualidade mimética costuma ser parte de sua eficiência”. Beniwa acolhe a tese de uma acadêmica e intelectual estrangeira porque, obviamente, vê nela uma aliada, afinal, a antropóloga dá voz à cultura indígena em língua estrangeira, o inglês, que alcança um grande número de pessoas.

Beniwa desenvolve uma tese da resistência, e ela é, de certa forma, paradoxal: “ainda que o colonizador em sua performance de troca procure certo domínio sobre o Outro, a estratégia cosmológica dos povos indígenas sempre encontra lacunas e caminhos para subverter a dominação pelo colonizador, mesmo que seja uma performance de subordinação e timidez em disputar protagonismos contra o colonizador à vista de todos”.

Joseca Yanomami, professor e estudioso da sociedade branca, como Beniwa o apresenta, expôs seus desenhos em um grande museu de São Paulo, mas se serviu de uma estratégia para evitar a total dominação do colonizador: a arte não estava só, pois era “necessária a presença do artista-pajé ou outro corpo yanomami para ativar a obra”.

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Esses exemplos, acredito, mostram que o paradoxo se mantém ativo na nossa compreensão da cultura brasileira (mas não só dela), nas três perspectivas citadas: a branca, a negra e a indígena.

P.S.: Acrescento que a minha intenção é a de levantar uma discussão por intermédio de diferentes vozes, as quais, porém, não solucionariam, nem poderiam, o enigma, não poderia, não saberia e não desejaria.

O fato é que o assunto que não se esgota, só Gilles Deleuze dedicou um livro ao tema. Lewis Carroll e Edward Lear trabalham estreitamente com o paradoxo, assim como toda a literatura nonsense e o teatro do absurdo. Giordano Bruno também, o filósofo. E James Joyce em Finnegans Wake nem se fala. Na América Latina: Macedonio Fernandez. Aqui: Campos de Carvalho…

O que acho inacreditável é que algumas discussões ainda fiquem no “ou isso ou aquilo”, quando temos os dois.

Dirce Waltrick do Amarante

Publicou, entre outros livros, Metáforas da Tradução (ensaios) e de Cenas (contos). Traduziu autores como James Joyce, Leonora Carrington, Gertrude Stein e Edward Lear.


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