Tony Mellieha não podia acreditar no que via diante dos próprios olhos. Sentia a multidão extasiada nas arquibancadas e tinha apenas oito anos, em 1975, quando uma excursão da escola o levou até o espetáculo que ficaria para sempre guardado na memória.
Era Pelé (que completaria 83 anos nesta segunda-feira), recém-tricampeão do mundo, demonstrando uma sessão de treinos para 17 mil pessoas no Empire Stadium, em Gzira, pequeno povoado da Ilha de Malta. O Rei nos deixou em 29 de dezembro do ano passado.

VEJA COMO FOI: Pelé se apresenta com uma sessão de treinos no estádio Gzira, em Malta, em 1975
Tony, um dos fãs do Rei que presenciaram essa visita, está longe de ser o único com esse sentimento. Entre os corredores do Museu do Futebol de Malta, dentro do estádio Nacional de Ta’ Qali, Kenneth Formosa – curador do local – lembra que era apenas uma criança quando Pelé esteve no país.
Assistiu tudo pela televisão e assim tornou-se um apaixonado pelo futebol.
– Era como se… um herói mundial estivesse em Malta. Todos os lugares que ele passava, as pessoas comemoravam nas ruas. Sabe quando o Papa sai? Foi a mesma coisa.
Ali, começava uma relação singela para a população do arquipélago da região central do Mediterrâneo, e neste dia 23 de outubro, aniversário de 83 anos do Rei, o primeiro sem Edson Arantes do Nascimento, contamos uma história escondida sobre como Pelé – movido pela amizade, a religião e o futebol – mudou a rotina de um país em três dias.

Pelé ao lado do Padre Hilary Tagliaferro (segurando o microfone), o responsável por levar o Rei para Malta — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Pelé ao lado do Padre Hilary Tagliaferro (segurando o microfone), o responsável por levar o Rei para Malta — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Essa história começa na Millenium Chapel, uma capela da cidade de St. Julian’s, em Malta, onde vive o Padre Hilary Tagliaferro – ou Father Hilary, como é conhecido no país.
Prestes a completar 89 anos, o padre sorri e caminha vagarosamente na direção de uma sala escura no subsolo da capela. Empurra a porta pesada, acende as luzes, e enfim aponta para uma foto – de duas pessoas – pregada na parede do local: Hilary e Pelé.
O Padre foi o responsável por levar o Rei a Malta.

Padre Hilary mostra foto com Pelé, autografada pelo Rei. Na assinatura: “Ao Padre Hilary, com abraço do amigo Pelé” — Foto: Camila Alves
Padre Hilary mostra foto com Pelé, autografada pelo Rei. Na assinatura: “Ao Padre Hilary, com abraço do amigo Pelé” — Foto: Camila Alves
Hilary Tagliaferro é padre, técnico de futebol e jornalista. Foi o primeiro maltês a cobrir uma Copa do Mundo in loco e participou de oito edições do torneio entre 1970 e 1998, além de seis Olimpíadas. Por isso a relação tão próxima com o futebol.

Padre Hilary conta bastidores da visita do Rei Pelé a Malta, em 1975
Como treinador, comandou o Hibernians FC diante do Manchester United, na Champions Cup de 1967 – antiga Champions League -, e criou também o Centro Educacional de Esportes em Malta – sendo considerado, por isso, o responsável por fundar as “categorias de base” no país.

“Um padre e o jogo bonito”, diz a manchete do jornal Independent, de Malta — Foto: Camila Alves
“Um padre e o jogo bonito”, diz a manchete do jornal Independent, de Malta — Foto: Camila Alves
Pelo interesse comum no futebol, Hilary e Pelé se tornaram amigos, e a cada quatro anos, durante as Copas do Mundo, onde quer que estivesse sendo sediada, eles se encontravam para jantar juntos.

Bilhete de imprensa da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, autografado por Pelé, em quadro de bilhetes dos Mundiais — Foto: Camila Alves
Bilhete de imprensa da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, autografado por Pelé, em quadro de bilhetes dos Mundiais — Foto: Camila Alves
Hilary guarda grande admiração pelo estilo de Pelé, mas também por sua personalidade e humildade, sempre respeitoso com todos. Ao longo dos anos em que estiveram distantes, recorriam às cartas para conversar, e o Padre conta que costumava escrever para Pelé. Falavam, principalmente, sobre futebol e jogos importantes que o Rei disputasse, por exemplo.
– Falávamos sobre a falta de jogadores individuais no futebol, a idade que deixavam o Brasil pela Europa e matavam a criatividade, talento e habilidade deles. Isso estava sendo visto na época e o que concluímos é que os brasileiros tinham a maturidade em seus times locais, virando jogadores aos 20, 21 anos. E agora eles vão para a Europa aos 14, 15 – revelou.
Quando não falavam sobre futebol, a conversa dos dois se concentrava em outro tema em comum: a religião. Hilary faz questão de dizer que Edson – para além da figura de Pelé – era muito religioso, e costumava falar sobre fé, respeito e o amor a Deus.
– Qualquer problema espiritual que ele tivesse dificuldade, ele falava e eu guiava e ajudava ele, sabe? Na primeira vez que ele se ajoelhou na minha frente, eu fiquei chocado. Porque eu sempre olhei para Pelé como um ídolo. Eu disse: vamos, levante! E ele disse: não vou levantar enquanto você não me der sua benção. E ele fazia isso todas as noites – contou, com o olhar pousado sobre a foto do amigo.

Pelé ao lado do Padre Hilary na Copa do México, em 1970 — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Pelé ao lado do Padre Hilary na Copa do México, em 1970 — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Foi através desta amizade que Pelé chegou a Malta, quando Hilary soube que o tricampeão mundial estava viajando o mundo – como embaixador do futebol – por conta da Pepsi e bateu nas portas da empresa com uma ordem: certifique-se de trazer Pelé para Malta.
Assim, em abril de 1975, o Rei desembarcou no arquipélago – de 300 mil habitantes na época – para uma viagem de três dias, mas sem jogos. Daria apenas uma sessão de treinos a jovens jogadores – formados por Hilary -, e ainda assim esteve diante de 17 mil pessoas no Empire Stadium, em Gzira.

Pelé desembarca no aeroporto de Malta para viagem de três dias — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Pelé desembarca no aeroporto de Malta para viagem de três dias — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
O estádio fechou as portas há mais de 50 anos, mas ao longo de sua existência também recebeu Real Madrid, Manchester United, Barcelona, e nomes como Franz Beckenbauer e Bobby Charlton. Gzira, aliás, tinha algumas particularidades em relação aos campos considerados “normais”.
– Nós sempre tivemos um problema de falta de água, então a superfície não era de grama. Era areia e cascalho, pequenos pedaços de pedra. Para fazer as linhas, usavam calcário líquido, e os jogadores se machucavam muito, então usavam a “água dos milagres” – contou Kenneth Formosa, apontando para os itens que guardou com carinho no Museu do Futebol em Malta.

Empire Stadium, em Gzira, durante uma partida entre Malta e Inglaterra, em 1971 — Foto: FIFA
Empire Stadium, em Gzira, durante uma partida entre Malta e Inglaterra, em 1971 — Foto: FIFA

Malta e Inglaterra, em 1971, enfrentaram-se no Empire Stadium, em Gzira — Foto: FIFA
Malta e Inglaterra, em 1971, enfrentaram-se no Empire Stadium, em Gzira — Foto: FIFA
Naquele dia 16 de abril de 1975, pisando sobre o calcário do campo, Pelé vestiu uma roupa de treino, mostrou brincadeiras com a bola e saltou entre bambolês diante de uma multidão em Gzira.
– Foi um espetáculo. As pessoas ainda lembram aqui em Malta. Pelé fazendo truques com a bola e ensinando os mais jovens a como fazer, dando um show sobre ele mesmo – lembrou Hilary.

Pelé ao lado do Padre Hilary – de óculos a sua direita – e representantes do futebol e Governo de Malta, em 1975 — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
Pelé ao lado do Padre Hilary – de óculos a sua direita – e representantes do futebol e Governo de Malta, em 1975 — Foto: Arquivo Pessoal / Cedido por Kenneth Formosa
A passagem de Pelé transformou o estádio e as ruas de Malta, estreitando laços com o futebol brasileiro – em um país de raízes ligadas principalmente à Itália e Inglaterra, que foram responsáveis pela colonização da região. Malta, aliás, tem uma seleção nacional, mas não disputa a Copa do Mundo, então é comum ver a devoção das pessoas a outras seleções – inclusive a do Brasil.
Entre as ruas da cidade de Qawra, por exemplo, chama a atenção uma bandeira do Brasil cobrindo o assento de uma cadeira na Captain Morgan Cruises – uma loja que vende passeios de barco para as praias do país. A bandeira pertence ao funcionário do local, Steve Saliba, que se apaixonou pelo futebol brasileiro graças ao pai.

Nascido em Malta, Steve Saliba carrega consigo uma bandeira do Brasil, guardada por sua paixão pelo futebol brasileiro — Foto: Camila Alves
Nascido em Malta, Steve Saliba carrega consigo uma bandeira do Brasil, guardada por sua paixão pelo futebol brasileiro — Foto: Camila Alves
São detalhes de uma história escondida, mas que em seis meses promete estar marcada pelas ruas de Malta.

Di Stefano, Bobby Charlton e Pelé, nomes que passaram pelas ruas de Malta ao longo da história — Foto: Camila Alves / Desenho exposto no Museu do Futebol de Malta
Di Stefano, Bobby Charlton e Pelé, nomes que passaram pelas ruas de Malta ao longo da história — Foto: Camila Alves / Desenho exposto no Museu do Futebol de Malta
Kenneth está há duas décadas pesquisando, aprendendo e colecionando itens referentes a Pelé – desde camisas, fotografias, obras de arte, posters, selos de carta e até mesmo o Menu do hotel em que o Rei esteve hospedado, autografado pelo próprio.
Kenneth – que era criança na viagem de 1975 – é tido como o responsável pelo maior acervo de Pelé no país.
– Eu gastei muito dinheiro nisso, mas não importa – confessou Kenneth, olhando uma das fotos expostas no Museu do Futebol.
Mas quanto dinheiro?
– Se eu começar a calcular, provavelmente vou morrer – brincou o curador, deixando escapar uma gargalhada.
Kenneth mostrano celular os inúmeros itens, que estão agora guardados em uma sala de sua casa, e conta o plano: inaugurar a exposição em abril de 2024. Será um pedaço da história, a quase nove mil quilômetros de distância do Brasil, que faz manter vivo legado do Rei.

Menu do jantar no Corinthia Palace, em Malta, onde Pelé esteve durante a viagem em Malta — Foto: Arquivo Pessoal de Kenneth Formosa
Menu do jantar no Corinthia Palace, em Malta, onde Pelé esteve durante a viagem em Malta — Foto: Arquivo Pessoal de Kenneth Formosa
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