O texto de hoje, ao contrário do que geralmente acontece, não será somente sobre gênero. Este artigo traz uma reflexão associada à presença das minorias no futebol. Como estudo de caso, buscarei analisar a misoginia através do futebol de mulheres e do racismo, sobretudo, a partir dos preconceitos sofridos pelo atleta Vinícius Júnior, Real Madrid. A proposta é um pouco ousada e espero que, ao final, seja satisfatória e sirva como um convite ao aprofundamento do debate.
Como torcedora, assistindo a algumas partidas de futebol, me veio o questionamento que impulsionou este texto: por que alguns grupos sociais têm a sua verdade respeitada dentro do futebol e outros precisam, constantemente, provar o seu “valor” para continuar existindo?
As Copas do Mundo FIFA de Futebol Feminino e a síndrome do “experimental”
Entre julho e agosto de 2023, tivemos a realização, na Austrália e Nova Zelândia, da 9ª Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino. Esse campeonato foi o primeiro que teve a transmissão de todas as suas partidas, com cobertura feita pela CazéTV, canal no Youtube, além da transmissão dos jogos da Seleção Brasileira de futebol, que também foram veiculados pelo Grupo Globo. Infelizmente, na edição que se proclamava “a Copa das Copas”, o selecionado brasileiro foi eliminado na fase de grupos, tendo a pior participação em todas as Copas do Mundo FIFA até agora.
William West / AFP. Reprodução.
A eliminação precoce do Brasil na competição gerou uma grande cobertura midiática e levantou o questionamento sobre o que deveria ser feito pela Confederação Brasileira de Futebol para que a seleção feminina tivesse mais êxitos no futuro. Não entraremos em temáticas já apontadas em textos anteriores, como o fraco investimento no futebol feminino ou, ainda, a ausência, por muito tempo, de mulheres dentro da instituição ou de comissões específicas para a modalidade feminina, que certamente ajudam a compor o conjunto de motivos que levaram a essa eliminação.
Contudo, o fato é que a saída da Copa evidenciou a não compatibilidade da então técnica da Seleção, Pia Sundhage, com o projeto esperado para a continuidade do futebol de mulheres. Logo após a eliminação, começou a se especular quem seria o nome ideal para assumir a seleção, até que se chegou ao escolhido pela CBF, Arthur Elias, técnico multicampeão com o time feminino do Corinthians.
O currículo de Elias no futebol de mulheres e toda bagagem de vitórias que ele carrega acabaram esvaziando os argumentos que começavam a surgir em mesas redondas e debates sobre o simbolismo que poderia existir com a retirada de uma mulher para a entrada de um homem no comando da Seleção Feminina. Apesar do simbolismo do fato, acredito que isso fale mais sobre a necessidade de incentivo ao surgimento e à atuação de mais técnicas do que sobre essa escolha específica.
Toda esta introdução sobre a recente eliminação brasileira tem o propósito de elucidar que, ainda hoje, nove Copas e 32 anos depois da primeira Copa do Mundo FIFA, realizada na China, em 1991, a Seleção Brasileira feminina ainda precisa de muito para se consolidar de fato em pé de igualdade com o selecionado masculino.
Aí está o primeiro ponto do nosso argumento: a necessidade constante de provar a importância e a viabilidade do futebol de mulheres. Após a eliminação na Copa de 2023, voltaram a pipocar comentários, sobretudo em postagens de redes sociais, de que mulher não sabe jogar futebol ou de que este não é um esporte feminino. Se isto acontece em 2023, nos anos da primeira Copa as manifestações machistas eram ainda mais frequentes – e não só com relação ao Brasil.
Exemplar do mundial experimental FIFA de 1988. Reprodução.
O torneio aconteceu na China e essa escolha não foi aleatória, uma vez que o continente asiático já havia organizado competições internacionais anteriormente. A Asian Ladies Football Confederation (ALFC) organizou a primeira Copa da Ásia em 1974. Em 1978, a ALFC criou a World Women’s Invitational Football Tournament, realizada até 1987, com intervalos de três anos entre as competições, em Taipé Chinesa, contando com seleções de vários lugares, além das asiáticas. O torneio organizado pela FIFA contou com doze seleções convidadas pela entidade: China, Canadá, Holanda, Costa do Marfim, Noruega, Tailândia, Austrália, Japão, Suécia, Tchecoslováquia, Estados Unidos e Brasil.
Para participar deste mundial, o Brasil montou, pela primeira vez, uma Seleção Feminina, pois a modalidade só havia sido regulamentada pela CBF em 1983. A cobertura da imprensa brasileira também foi bastante “experimental”, tendo como enviada apenas a jornalista Cláudia Silva, do Jornal dos Sports.
Aos olhos da FIFA, o torneio foi um sucesso. De acordo com as palavras do próprio João Havelange, então presidente da entidade, em congresso realizado em Zurique em 1988,
o torneio foi um enorme sucesso de público, com 360.000 torcedores nas 24 partidas (disputadas em 18 eventos), perfazendo uma média de 20.000 por evento. Oito jogos foram transmitidos ao vivo pela televisão chinesa, enquanto os destaques de todos os outros jogos foram exibidos na China e no exterior. O torneio foi tecnicamente de alto padrão. Foram marcados 81 gols, dando uma média de mais de três gols por partida. A atitude esportiva das mulheres foi excelente e condizente com o ambiente hospitaleiro da China. (FIFA, 46º FIFA Congress Report, Zurique, 1988. p. 6. Tradução livre)
Toda a explanação feita até aqui tem o objetivo de reiterar a afirmação feita no início do texto: o futebol de mulheres – mesmo em nível mundial – teve e ainda tem que provar constantemente sua viabilidade e seu valor para que seja considerado passível de investimento e apoio. E, mesmo assim, no imaginário social brasileiro, ao menor deslize, surgem novamente questionamentos acerca da presença feminina no futebol, como foi feito após a eliminação em 2023.
O racismo no futebol – e na sociedade – e a necessidade de firmar um lugar
Remontar episódios de racismo no futebol mundial e brasileiro é quase como buscar aquele tão temido mito de origem, que os historiadores tentam evitar a todo custo. Aqui, não buscamos afirmar quando foi o primeiro ataque racista no esporte. O que se pode dizer é que, desde o início da prática da modalidade no Brasil, houve um cerceamento desse espaço às pessoas negras, uma vez que o futebol – ao menos o futebol de elite – era reservado aos brancos de classe média alta, que deveriam praticar o esporte de forma amadora.
Vinícius Júnior. Foto: Oscar del Pozzo/AFP. Reprodução.
O caso de Vinícius é interessante por dois aspectos. O primeiro, que será menos analisado neste texto, diz respeito ao fato de grande parte dos ataques terem acontecido na Espanha – o que, de cara, já quebra a ideia de que o Brasil, ou somente a América Latina, são países racistas. O racismo, infelizmente, está em todo lugar.
Novamente, agora de outra perspectiva, vemos que um indivíduo, que representa toda uma parcela da sociedade, precisa se reafirmar e provar constantemente a veracidade de suas posições. Vinícius Júnior, ao contrário das jogadoras de futebol feminino, não precisa mais lutar para estar em campo: enquanto homem, para a sociedade, o futebol é um espaço dele. Contudo, ele precisa provar seu valor e a veracidade de suas falas para conseguir exercer sua profissão sem ser ofendido ou sofrer ameaças. O que nos leva à reflexão levantada no início do texto: por que o jogador precisa ser “validado”? Por que seus argumentos e denúncias são menosprezadas de diferentes formas?
O jogador tem sido uma voz importante que denuncia e luta pela mudança nessas ações, mas ele não é o único que sofre com esse tipo de comportamento criminoso vindo das arquibancadas. Ele é a voz que, atualmente, exemplifica pelo que passa uma importante parcela dos jogadores de futebol, e da sociedade como um todo, principalmente quando levamos em conta que tanto jogadores de alto rendimento – como o próprio Vinícius – e, sobretudo, pessoas pretas mais pobres, sofrem cotidianamente atos racistas.
Como lidamos com o futuro?
Acredito ter demonstrado que – de diferentes maneiras e cumprindo diferentes exigências – dois grupos das chamadas “minorias” precisam, constantemente, provar seu “valor” para a sociedade para poderem seguir praticando o esporte que gostam ou realizando sua profissão. O estigma da necessidade de “validação” é uma constante que acompanha as parcelas da sociedade aqui mencionadas.
Essa necessidade está associada ao imaginário social – alimentado por muito tempo pelas mídias e pelas entidades gestoras do esporte, que ainda associam o futebol a um esporte masculino –, bem como ao racismo estrutural presente em diversas sociedades. Tais características fazem com que o futebol esteja muito longe de ser um esporte vivenciado de forma equitativa por todos os indivíduos.
De certa maneira, há algumas iniciativas que tentam minimizar os danos: seja a criação de comissões e a nomeação de ex-jogadoras e mulheres para integrar os entes de gestão do futebol, no caso do futebol de mulheres; seja com a observação, a identificação e a punição de crimes de racismo, e a existência de organizações de denúncia, como o caso do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. É claro que ainda é muito pouco para que essas situações de fato deixem de acontecer, mas já é um avanço.
Do lado de cá, cabe-nos refletir sobre esses acontecimentos, nos questionar sobre eles e tentar fazer algo ao nosso alcance para tentar modificar este cenário. Portanto, o texto que começou com uma reflexão se encerrará com outra: o que podemos fazer para tornar o futebol um espaço mais igualitário?
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