A violência como rotina num futebol acuado, à espera da tragédia anunciada


Na entrevista coletiva que concedeu no Ninho do Urubu, Marcos Braz baseou sua argumentação na condição de pai importunado, constrangido e ameaçado de morte na frente da filha, uma adolescente às vésperas de completar 15 anos. De fato, é uma violência inaceitável. E é um tanto cômodo, para não dizer pedante, decretar que qualquer pessoa deva estar preparada para viver tal situação.

Mais adiante, no entanto, Braz encerra sua argumentação repetindo a tese do vice-presidente geral do Flamengo, o advogado Rodrigo Dunshee: “Eu sou vítima”. Era uma verdade, até Braz desferir o primeiro golpe no torcedor que o ameaçava.

Marcos Braz entrevista coletiva Flamengo — Foto: Letícia Marques/ge
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Marcos Braz entrevista coletiva Flamengo — Foto: Letícia Marques/ge

Marcos Braz entrevista coletiva Flamengo — Foto: Letícia Marques/ge

A partir daí, a um ato de violência moral e constrangimento seguiu-se um revide com violência física. Este praticado por um personagem público, não apenas pelo cargo ocupado no Flamengo, razão pela qual fora perseguido no shopping, mas especialmente pela sua função de vereador. Ali estava um servidor público, cujos vencimentos são pagos pelo contribuinte, ausente da Câmara em horário de sessão. E o ônus do cargo, conseguido em boa parte pela popularidade que a função no clube lhe conferiu, é o reforço do compromisso de acionar as autoridades em caso de perseguições ou ameaças, no lugar de fazer justiça com as próprias mãos. Algo que, aliás, vale para qualquer cidadão.

Os erros de lado a dão ao caso uma de suas tantas facetas: a policial. As câmeras de segurança do shopping provavelmente ajudarão a recompor todo o evento, inclusive as cenas de que Braz diz não se lembrar. E cada um dos envolvidos precisa responder por seus erros.

Mas o episódio tem outras dimensões, uma delas de interesse público. Braz pareceu menos paciente ao falar de sua ausência na Câmara, chegou a sugerir ser praxe vereadores escolherem as votações a que comparecem. A sociedade merece explicações mais detalhadas sobre o funcionamento da casa.

Assim como precisa refletir sobre o tamanho do buraco em que o futebol se enfiou em seu flerte cotidiano com a tragédia. O episódio entre Braz e um torcedor é especialmente revelador da normalização da violência, da intimidação, da perseguição pública a personagens do jogo. A gestão de um dirigente ou os resultados esportivos não podem ser punidos com agressões, ameaças de morte ou constrangimentos, muito menos na frente de uma adolescente.

Mas é notável reparar como Braz diversas vezes citou, como um argumento a seu favor, o fato de jamais ter reagido diante de diversos episódios semelhantes. Atribui seu descontrole, e as posteriores agressões que cometeu acompanhado de um amigo, à presença da filha.

Ora, Braz não deveria resolver quaisquer destes episódios, com ou sem a presença da menina, no braço. No entanto, tampouco era obrigado a se manter passivo, sem recorrer às autoridades, a cada intimidação ou xingamento. Seus argumentos, no fundo, revelam como vivem acuadas as pessoas que fazem futebol no Brasil. Porque normalizamos a violência como punição por derrotas.

O vice-presidente rubro-negro chega a dizer, também como se fosse uma distinção, que não anda acompanhado de seguranças. É brutal notar que um dirigente esportivo precise considerar esta possibilidade, ou que muitos só se sintam seguros, eles e suas famílias, com ao menos um guarda-costas à disposição. É um sinal de falência total.

O Flamengo é apenas o clube da vez. E o caso rubro-negro ilustra a gravidade do momento. Há um farto material em redes sociais, em perfis de grupos organizados de torcedores, com clara apologia à violência contra jogadores, contra Braz e contra o amigo do dirigente, que participou das agressões ao torcedor. Há desde ameaças explícitas de morte, até incentivos a agressões. O que nos leva de volta à face policial do caso. A mobilização para perseguir o dirigente estava em andamento. Mas, outra vez, o futebol fracassou, acuado diante de uma violência que se tornou estrutural.

Esta é uma construção realizada durante décadas. E os dirigentes, hoje alvos, participaram dela. Tais ofensas, constrangimentos e ameaças, foram e são tantas e tantas vezes praticados contra jogadores, e patrocinados por cartolas que abrem as portas de centros de treinamento para “reuniões” com organizadas.

O futebol brasileiro tornou-se um ambiente tóxico intolerante a derrotas e, principalmente, a expectativas não cumpridas. E talvez seja aí que se enquadre com mais precisão o caso Flamengo. O fato é que o futebol passou a desconhecer forma diferente da violência para curar qualquer ferida. O jogo, que já fabricou mortes em conflitos de torcida, coleciona alvos em potencial entre atletas, treinadores e dirigentes: a dúvida é quando estes grupos terão a primeira vítima fatal.


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