
No Japão, até os detalhes mais banais da vida urbana são tratados com esmero e respeito. E isso se estende a um dos elementos mais improváveis: as tampas de bueiro.
Se, em quase todo o mundo, elas são apenas peças de metal cinzentas e funcionais, no Japão se transformaram em verdadeiras obras de arte a céu aberto (ou melhor, sob os pés).
Melhorar a ”imagem” do esgoto
A tradição das tampas de bueiro decoradas começou em 1977, na cidade de Naha, capital de Okinawa. Na época, um simples desenho de um peixe sorrindo em águas límpidas foi a semente de um fenômeno que, décadas depois, ganharia status de patrimônio cultural não oficial, encantando turistas e moradores.
A iniciativa tinha um objetivo muito prático: melhorar a percepção da população sobre o sistema de esgoto, frequentemente visto com desconfiança.

Em resposta aos questionamentos do Portal iG, o Instituto Cultural Brasil-Japão conta que o sucesso dos bueiros no Japão foi tanto que, a partir de 1981, os desenhos ganharam cores vibrantes, muitas vezes fluorescentes, tornando-se não apenas atrativos estéticos, mas também guias noturnos para pedestres.
Esse cuidado reflete muito de uma característica fundamental da sociedade japonesa: o olhar atento para transformar o ordinário em extraordinário.
Uma galeria a céu aberto
Hoje, há cerca de 6 mil tampas de bueiro catalogadas oficialmente no Japão, com designs únicos que representam as mais diversas expressões culturais, naturais e históricas das regiões.
Esse trabalho de mapeamento, conservação e divulgação é conduzido por uma organização formal no Japão, que mantém um site dedicado (em japonês) para registrar, divulgar e educar sobre essas verdadeiras obras de arte urbanas.
Além disso, há também a atuação da Japan Society of Manhole Covers, uma entidade civil não governamental, formada por pesquisadores, entusiastas e colecionadores, que há anos se dedica a estudar e divulgar essa expressão cultural singular do país.

Cada tampa conta uma história e carrega consigo a identidade da região onde está instalada. É comum encontrar representações de:
- Flora e fauna locais: cerejeiras em flor, carpas, corvos de três patas (símbolo xintoísta) e animais endêmicos de cada província;
- Patrimônios históricos: castelos, templos, pontes e ruínas famosas;
- Eventos e festivais: danças tradicionais, festivais de fogo, celebrações sazonais;
- Referências culturais modernas: personagens de animes, mascotes locais e até referências a esportes.
A cidade de Osaka, por exemplo, tem tampas que representam seu famoso castelo. Já em Hakone, é possível encontrar ilustrações do Monte Fuji . E em Suginami, há tampas com personagens de animes populares produzidos por estúdios locais.
Turismo sob os pés
O fascínio pelos bueiros do Japão não se limita aos japoneses. Nos últimos anos, viraram pontos turísticos.
Visitantes de diversos países percorrem bairros, cidades e vilarejos em busca das tampas mais criativas.
Tóquio, a capital, desenvolveu um programa em que os turistas podem colecionar cards gratuitos, semelhantes a figurinhas, cada um retratando uma tampa de bueiro específica. É um convite lúdico para explorar a cidade de maneira diferente.
Esse movimento não é ocasional. Está diretamente alinhado a uma estratégia turística do governo japonês, que promove o conceito de “turismo local experiencial”. Em vez de apenas visitar os grandes monumentos, os turistas são incentivados a vivenciar a cultura cotidiana, e os bueiros são parte desse roteiro.

Simbolismos por trás dos desenhos
Além da função turística e estética, há significados profundos nos desenhos que estampam as tampas de bueiro japonesas.
De acordo com informações do portal oficial Japan Travel e da plataforma cultural Matcha Japan, os principais simbolismos são:
- Proteção e purificação: a água, elemento central nos sistemas de esgoto, é um símbolo xintoísta de purificação. Assim, muitos desenhos evocam a ideia de manter a cidade limpa e protegida;
- Orgulho local: as imagens exaltam a identidade cultural e histórica de cada local, fortalecendo o sentimento de pertencimento entre os moradores;
- Harmonia com a natureza: elementos como flores, árvores e animais destacam a busca pela coexistência entre o urbano e o natural — um conceito central na cultura japonesa;
- Resistência e superação: algumas tampas celebram a reconstrução de cidades após desastres naturais, como terremotos e tsunamis, reforçando a resiliência das comunidades.
Há, inclusive, tampas que prestam homenagem a profissões, tecnologias locais ou eventos históricos específicos, funcionando como pequenos memoriais urbanos.
O reflexo de uma mentalidade cultural
Quando perguntado se essa estética aplicada a objetos tão cotidianos reflete alguma característica da sociedade japonesa, o Instituto Cultural Brasil-Japão foi enfático: sim.
Para eles, trata-se da capacidade dos japoneses de valorizar o coletivo, enxergar beleza no funcional e transformar o que é comum em algo de valor para todos.
Essa filosofia tem raízes em conceitos tradicionais como o wabi-sabi(que valoriza a beleza da imperfeição e da simplicidade) e também na prática do mottainai, que prega o respeito aos objetos e a não geração de desperdício. Nesse contexto, até uma tampa de bueiro deixa de ser um mero pedaço de ferro para se tornar um elo entre pessoas, histórias e lugares.

Um movimento global
O sucesso das tampas de bueiro decoradas começa a inspirar outros países. Cidades como Paris, Nova York e São Paulo têm estudado a possibilidade de adotar práticas semelhantes.
No entanto, como lembra o próprio instituto, mais do que a estética, é necessário adotar a filosofia por trás dessa prática: o cuidado com o espaço público e a valorização da comunidade.
Se no Japão os bueiros viraram ponto turístico, talvez a maior lição seja simples: o mundo está cheio de beleza, até onde menos se espera. Basta, literalmente, olhar para baixo.