
Lilia Schwarcz e Flávio Gomes estão no evento de lançamento do projeto Design e Literatura – Com Textos
A antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Lilia Schwarcz e o historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Flávio Gomes reforçam dois marcadores como essenciais nos pilares das respectivas obras: o resgate da memória de personagens invisibilizados e a interseção de temáticas sociais.
É neste ponto de convergência que os dois se encontraram no meio da produção acadêmica e editorial, uma parceria que se estende por anos e expande projetos em conjunto. A união das expertises baseia debate promovido nesta quinta-feira, 5, na primeira edição do projeto “Design e Literatura – Com Textos”, realizado pela Prefeitura de Fortaleza no Museu da Fotografia.
Com mediação do curador e galerista Max Perlingeiro, o evento objetiva estimular uma visão interdisciplinar sobre o Design a partir da discussão de questões como racismo e sexismo em conjunto com ações já realizadas, a exemplo do Bora!Design, do Festival Mulheridades e da Jornada Mundial de Design. Na conversa com o tema “Raça, Cultura e Política”, Lilia e Flávio arqueiam o bate-papo em direção ao “chamamento de uma pauta mais ampla para pensar historicidade, representatividade, cidadania e inclusão”, como elenca o historiador.
O ponto de partida da conferência é o livro “Enciclopédia Negra” (2021), idealizado por Flávio e Lilia ao lado do artista Jaime Lauriano. Vencedora do Prêmio Jabuti 2022, a produção enfatiza o protagonismo negro na história do País com o agrupamento de mais de 550 personalidades negras, em 416 verbetes individuais e coletivos, retratadas por 36 artistas.
“A Enciclopédia é o fio condutor do debate, não pela obra em si, mas como essa temática que mobiliza a gente a pensar a história do Brasil, a história afro-brasileira e os movimentos anti-racistas. A gente utiliza o livro para dizer o quanto esse projeto e vários outros estão movendo regiões que entram em uma dimensão da história afro-brasileira em um território tão grande”, contextualiza Flávio.
A ideia do escrito nasceu durante o processo de desenvolvimento do “Dicionário da Escravidão e Liberdade” (2018), outra parceria entre os dois. Para que ela fosse concretizada, ambos mergulharam em um processo longo e intenso de pesquisa em fontes oficiais, a fim de “recuperar experiências e personagens invisíveis” entre os séculos XVI e XX.
“À medida em que a gente cobria quase todos os personagens mais icônicos e simbólicos, a gente ia atrás também de outros que não estão em nenhum livro. Não concentramos em Rio-Bahia-São Paulo e temos paridade entre homens e mulheres, também tentamos incluir pessoas que hoje estariam, na atual nomenclatura inclusiva e cidadã, na comunidade LGBTQIA , o que foi difícil pela repressão colonial e outros processos das épocas”.
A iniciativa, complementa o pesquisador, orientou a criação de novas representações a partir da “dupla dimensão” dialogada e conectada de vivências e figuras. “Você não tem imagens de muitas pessoas, principalmente, do século XVI e XVII, e outras mais icônicas foram pintadas à margem da imaginação e vêm sendo representadas da mesma maneira há décadas. A história afro-brasileira foi sequestrada. Personagens como Zumbi e Luiz Gama são importantíssimos, mas quantos outros personagens raros e únicos existem?”, questiona.
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Para Lilia, as movimentações de fabulação que constroem a “Enciclopédia Negra” funcionam como um caminho para produzir uma narrativa política capaz de “preencher” o silenciamento. “Nós não poderíamos fazer a Enciclopédia sem priorizar as interseccionalidades. A gente sabia que era um trabalho político e coletivo, hoje vários personagens entraram no cinema, no teatro, no trabalho de outros artistas. O livro é ponto de partida, não de chegada, mas nós tínhamos certezas que seriam atravessados por marcadores sociais múltiplos”, complementa a historiadora.
Além da publicação física, o trabalho apelidado pelos idealizadores como “projeto mutirão” segue em ritmo contínuo com envolvimento de diferentes entidades e parceiros. Entre maio e novembro de 2021, a Pinacoteca de São Paulo promoveu a exposição “Enciclopédia Negra”, com 103 obras realizadas para o livro e todos artistas integrados ao acervo da instituição cultural. “Nossos patrimônios e monumentos, por exemplo, são profundamente brancos, masculinos, coloniais, sudestinos. Tem que ser feito um trabalho muito forte na alteração dos nossos conteúdos, nos currículos de história, na educação pública, na conformação dos museus”.
Lançada durante os últimos anos do governo Jair Bolsonaro, considerado pela historiadora como um período de uma forte atuação de apagamento das “várias ancestralidades que constroem o País”, a “Enciclopédia Negra” segue somando repercussões em encontros, mostras, debates e trabalhos para subverter “mais de um século de apagamento”, como considera Lilia. “O tema continua urgente e atual“, arremata a antropóloga.
Design e Literatura – Com Textos
- Quando: quinta-feira, 5, às 19 horas
- Onde: Auditório do Museu da Fotografia (rua Frederico Borges, 545 – Varjota)
Gratuito