O conflito entre Ucrânia e Rússia, prestes a completar três anos, está reconfigurando o setor tecnológico na Europa Oriental. Startups na Letônia e países vizinhos estão repensando produtos inicialmente concebidos para uso civil, como scooters e drones, adaptando-os rapidamente para o campo de batalha.
Este movimento, retratado no MIT Tech Review, não apenas reflete o impacto da guerra sobre as empresas locais, mas também serve como inspiração para repensar a colaboração entre governos, sociedade civil e o setor privado em tempos de crise.
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Uma scooter fora do comum
À primeira vista, a scooter elétrica Mosphera da startup letã Global Wolf Motors parece apenas um modelo superdimensionado. No entanto, o veículo é projetado para enfrentar terrenos extremos, com capacidade de atingir 100 km/h e autonomia de até 300 km por carga. Quando lançada em 2020, a empresa visava um mercado diversificado, desde agricultores e mineradores até guardas florestais. A possibilidade de uso militar era apenas uma hipótese remota.
Porém, tudo mudou com a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022. Nos primeiros dias do conflito, unidades de combate ucranianas buscaram qualquer equipamento útil, mesmo ideias que não teriam sido consideradas em tempos de paz. Por meio de contatos, a Global Wolf enviou duas scooters para a linha de frente.
As Mospheras provaram ser ferramentas úteis para missões de reconhecimento realizadas por forças especiais ucranianas, um marco que destacou uma nova demanda: produtos civis transformados em equipamentos militares.
Tecnologia civil no campo de batalha
A rápida adaptação da Ucrânia para converter tecnologias civis em ferramentas de defesa serviu de alerta e inspiração para países como a Letônia. “Infelizmente, a Ucrânia se tornou o maior campo de testes de tecnologias de defesa no mundo hoje”, relata Kaspars Pollaks, ex-oficial naval e chefe de inovação em defesa na operadora de telecomunicações LMT.
Este aprendizado está levando startups e governos a explorarem o potencial de tecnologias de uso duplo, ou seja, com aplicações tanto civis quanto militares. Drones, por exemplo, têm ganhado destaque. Empresas letãs como a Atlas Dynamics, especializada em drones industriais, desenvolveram versões mais robustas para operar em condições de guerra, enfrentando desafios como interferências eletrônicas russas.
Segundo Ivan Tolchinsky, CEO da Atlas Dynamics, a guerra acelerou a percepção sobre a importância de inovações criadas por startups. “Mais e mais investidores estão interessados em empresas de defesa, algo que era raro antes de 2022.”
Financiamento e obstáculos
A Letônia e outros países europeus estão direcionando recursos para incentivar o desenvolvimento de tecnologias militares. A Letônia, por exemplo, lançou um fundo de €600 mil para startups de drones e investiu €10 milhões em novos programas voltados para UAVs (veículos aéreos não tripulados). Além disso, lidera, junto ao Reino Unido, a Coalizão de Drones, iniciativa multinacional que destina €500 milhões para fortalecer a cadeia de suprimentos de drones no Ocidente.
Apesar do impulso financeiro, muitos empreendedores enfrentam desafios burocráticos para entrar nas cadeias de suprimentos militares. “Os governos europeus ainda operam como se estivessem em tempos de paz, o que limita sua capacidade de inovar rapidamente”, explica Ieva Ilves, diplomata letã e especialista em políticas tecnológicas.
Esse contraste é evidente ao comparar com o modelo ucraniano, que flexibilizou processos de aquisição para que soldados possam testar novos equipamentos diretamente na linha de frente. “O que a Ucrânia demonstra é que a tecnologia militar não depende apenas do que os exércitos compram, mas de como eles compram e integram essas soluções”, afirma Ilves.
Papel das startups
Startups como a Origin Robotics, fundada por ex-empreendedores de drones para esportes, agora desenvolvem sistemas de armas guiadas que cabem em uma mochila. Empresas como a Exonicus criaram simuladores de realidade aumentada para treinar médicos militares em ambientes virtuais.
Essas soluções de pequeno porte têm sido especialmente valiosas para países com recursos militares limitados, como a Letônia, que investiu em sistemas menores e mais especializados em vez de grandes arsenais.
A batalha também serve como um campo de testes para startups que buscam validar rapidamente suas tecnologias. Muitas empresas têm enviado protótipos diretamente às tropas ucranianas, recebendo feedback que ajuda na evolução dos produtos. “Se você vende para a Ucrânia, consegue iterar rapidamente e testar no campo”, destaca Jack Wang, investidor em startups militares.
Lições para a Europa
Apesar das iniciativas, especialistas alertam que a Europa está aprendendo apenas parcialmente as lições do conflito. A burocracia e o receio de parecer desperdiçar dinheiro continuam a atrapalhar o apoio a startups que poderiam fazer a diferença em futuras crises. Além disso, a dependência de financiamento externo, especialmente dos EUA, coloca em risco a sustentabilidade desses esforços.
Com a possibilidade de mudanças na política de apoio militar americano sob a nova administração Trump, o cenário para startups militares europeias pode sofrer impactos significativos. “Haverá um gap de curto prazo que será desafiador para as empresas”, prevê Wang.
Ainda assim, Ilves acredita que há razões para otimismo. “Se algo atravessar nossas fronteiras, nossas sociedades têm capacidade de se unir e reagir, assim como vimos na Ucrânia”, diz.
Preparação para um futuro incerto
No horizonte incerto da segurança global, o que emerge do Leste Europeu é um modelo de resiliência que combina inovação tecnológica, adaptabilidade e uma forte integração entre governo e setor privado. Embora longe do ideal, o esforço liderado pela Ucrânia e replicado em países como a Letônia oferece um vislumbre de como a tecnologia pode ser mobilizada rapidamente para enfrentar ameaças.
Conforme Ilves ressalta: “O verdadeiro desafio é garantir que aprendamos com o que está acontecendo agora, antes que seja tarde demais”.
*Com informações do MIT Tech Review
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