Em contraste, ficou evidente como as agremiações brasileiras são bem menos representativas, com processos eleitorais diminutos e restritivos, independente do tamanho das torcidas que as sustentam, raramente superando 5 mil votos.
Há uma série de fatores históricos, culturais e políticos que explicam esse fenômeno. Um deles, de compreensão mais difícil e pouco discutido no entre torcedores, jornalistas e pesquisadores, é a “quase democratização incidental” do início do século – como tentei definir lá no livro “A Produção do Clube”.
Trata-se da Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil, um conjunto de regulamentações sobre as atividades civis, de empresas a associações civis – onde entrariam os clubes de futebol.
O ponto que mais impactou os clubes em 2003 foi o Artigo 59:
Art. 59. Compete privativamente à assembléia geral:
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I – eleger os administradores;
II – destituir os administradores;
III – aprovar as contas;
IV – alterar o estatuto.
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Parágrafo único. Para as deliberações a que se referem os incisos II e IV é exigido o voto concorde de dois terços dos presentes à assembléia especialmente convocada para esse fim, não podendo ela deliberar, em primeira convocação, sem a maioria absoluta dos associados, ou com menos de um terço nas convocações seguintes.
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Em resumo:
O novo Código Civil obrigava as “associações civis” (independente da natureza) a realizar eleições diretas junto aos sócios, através de assembleias eleitorais. Também passava ao conjunto dos sócios a autoridade da apreciação das contas da gestão do ano corrente, podendo aprová-las ou reprová-las, gerando consequências políticas aos seus diretores – como inegilibilidade ou responsabilização.
Essa regulamentação do modo de funcionamento das associações civis buscava atualizar o escopo jurídico brasileiro ao que as demais democracias ao redor do mundo já praticavam há décadas. Dessa forma, ainda que sem focar exatamente nos clubes de futebol, o Código Civil de 2002 acabou regulamentando também as agremiações esportivas constituídas enquanto associações civis.
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O Código Civil era uma demanda antiga da sociedade brasileira como um todo, já que o último arcabouço robusto de leis do tipo datava de 1916. A própria Ditadura Militar entendia a importância dessa atualização, razão pela qual o próprio Poder Executivo, à época comandado por Ernesto Geisel, apresentou o Projeto de Lei n.634 de 1975.
Esse PL de 1975 foi a base do texto aprovado quase 30 anos depois, sendo discutido outras vezes pela Câmara dos Deputados (1975 e 1998) e pelo Senado Federal (1984), sem jamais ser aprovado. O Artigo 59 esteve basicamente intacto ao longo de todo esse processo.
E foi um problema que, aparentemente, nenhum cartola percebeu, mesmo que muitos parlamentares fossem vinculados a clubes de futebol. A Folha de SP, na matéria “Dirigentes fazem críticas e pedem mudanças” (17/02/2003), traduz o seu efeito à época:
“Uma das últimas mudanças, embora não específica da legislação esportiva, foi feita pelo novo Código Civil. Publicado em 2002, e em vigência desde janeiro passado, diz respeito à estrutura das associações esportivas e pode significar o fim de colégios eleitorais que mantêm no cargo, por anos a fio, dirigentes como Alberto Dualib, presidente do Corinthians, e Mustafá Contursi, do Palmeiras.
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Pelo novo código, a partir das próximas eleições fica em poder da assembléia geral dos sócios — e não de um conselho fechado, como acontece atualmente — a escolha dos novos dirigentes. Mas clubes e federações dizem que não irão alterar o sistema, sob o argumento de a Constituição Federal de 1988 assegurar autonomia organizacional a eles”
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Aqui há um fato curioso, que talvez explique a “desatenção” dos cartolas.
Nos anos anteriores, os esforços dos dirigentes esportivos estiveram voltados para derrubar uma interferência prevista em outra norma: a Lei Pelé (9.615/1998), que havia sido aprovada com a obrigação de que clubes de futebol adotassem o modelo empresarial (como sociedades anônimas).
A deturpação da Lei Pelé se deu em consecutivas reformas, que adiaram o prazo de adaptação dos clubes, com uma definitiva derrubada do seu caráter obrigatório na “Lei Maguilo Vilela”(9.981/2000). Os clubes alegavam que essa “intervenção” feria a autonomia das associações civis, prevista no artigo 217 da Constituição Federal.
Esse argumento foi praticamente o mesmo para desconsiderar a validade do novo Código Civil. Para os cartolas, os clubes não poderiam ser obrigados a adotar um tipo específico de estatuto social, nem um modelo específico de eleição ou de soberania da Assembleia Geral sobre o “conselho deliberativo”.
Há uma discussão jurídica bastante densa sobre o assunto, mas parece claro que não há correlação entre as duas questões. O funcionamento das associações civis é regulamentado por lei em todas as democracias do planeta, mas no Brasil as “regras estatutárias” dos clubes estiveram historicamente restritas às “decisões internas” exatamente pela falta de um Código Civil atualizado.
Espanha e Portugal, por exemplo, fizeram suas reformas após o fim das respectivas ditaduras (Francisco Franco e António Salazar), entre as décadas de 1970 e 1980. É o processo histórico que explica como, na atualidade, o Barcelona realiza eleições com 57 mil sócios e como o Benfica mobiliza mais de 40 mil votos – como mostramos no texto anterior.
O fato é que os cartolas agiram e conseguiram fazer com o Código Civil a mesma coisa que ocorreu à Lei Pelé. Sucessivas alterações na lei protelaram o prazo de adaptação das associações esportivas, com uma alteração final no PLV 12/2005, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP) – ou seja, três anos depois –, que atacou diretamente todos os artigos que eram alvos de questionamento dos dirigentes de clubes.
Especialmente o Artigo 59:
Art. 59. Compete privativamente à assembléia geral:
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I – (excluído)
I – destituir os administradores;
II – (excluído)
II – alterar o estatuto.
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Parágrafo único. Para as deliberações a que se referem os incisos I e II deste artigo é exigido deliberação da assembléia especialmente convocada para esse fim, cujo quórum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores. (alterado)
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Em resumo:
A nova lei de 2005 soterrou a soberania da assembleia de sócios na eleição dos administradores (inciso I), e só foi mantida a incumbência de destituição dos administradores (inciso II). O mesmo tipo de limitação ocorreria com a apreciação das contas (inciso III).
Ou seja, a destituição de uma diretoria teria que passar pela assembleia geral (processo mais longo e complexo), mas a eleição de uma diretoria passaria exclusivamente pelo crivo do conselho deliberativo. A apreciação das contas também se resumiria ao conselho deliberativo, cuja composição também seria de “autonomia” das associações.
Arnaldo Faria de Sá, autor do PLV 12/2005, havia sido presidente da Portuguesa-SP entre 1990 e 1993. O parlamentar também teve atuação intensa quando da Lei Zico e da Lei Pelé, de acordo com a dissertação “Grupos de interesse e o processo de modernização do futebol brasileiro”, de Thiago Hinojosa Belmar, defendida em 2016 na FFLCH/USP.
O mesmo estudo aponta que Faria de Sá legislou ao lado de figuras como o então presidente do Vasco Eurico Miranda (PL/PPB-RJ); o então ex-presidente presidente do Flamengo Marcio Braga (PMDB-RJ); o então vice-presidente do conselho deliberativo do Atlético-GO Jovair Arantes (PSDB/PTB-GO); o ex-presidente do Vitória José Alves Rocha (PFL-BA); o futuro presidente do Bahia Marcelo Guimarães Filho (PFL-BA); o então presidente do Sport Luciano Bivar (PSL-PE), o então ex-presidente do Cruzeiro Zezé Perrella (PFL-MG) e muitos outros parlamentares ligados a clubes de futebol.
Juntos, compunham a chamada “Bancada da Bola”, cuja atuação também se deu em outras ocasiões importantes, como as aprovações da Timemania (nova loteria esportiva), do Estatuto do Desporto (1998) e da Lei n. 5186/2005 (que alterou a Lei Pelé). Essa frente parlamentar esteve em evidência na “CPI CBF/Nike” de 2011, que revelou doações de campanha diretas da Confederação Brasileira de Futebol, à época comandada por Ricardo Teixeira.
Ainda que o assunto volte a ser discutido no futuro, não há mais espaço para mudanças de ordem legal. No dia 10 de agosto de 2005, apenas treze dias após a apresentação do PL que derrubava a soberania da assembleia de sócios nos clubes, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (3045/2005) foi votada pelo STF, que declarou por unanimidade sua procedência.
A tese de “hiper-autonomia” defendida por juristas e políticos ligados aos clubes de futebol foi consagrada na mais alta corte do país, com a participação direta de conselheiros de clubes, como Ives Gandra Martins e Carlos Miguel Aidar, ligados ao São Paulo Futebol Clube.
Esse processo histórico pouco conhecido explica duas coisas importantes.
Primeiro: a diferença entre os modelos dos clubes brasileiros, que tem em clubes com Internacional e Grêmio eleições massivas, com mais de 20 mil votos diretos (porque adotaram o Código Civil no início do século); em contraste com clubes que elegem presidentes apenas através do Conselho Deliberativo, com um número irrisório de participantes (porque protelaram a adoção até a derrubada da norma).
Segundo: a atuação parlamentar de deputados relacionados a clubes de futebol não tinha grandes princípios, senão o de preservar o poder desses mesmos nos seus clubes. Assim como impediram a transformação obrigatória dos clubes em empresas na Lei Pelé, em 2000; também foram ferozes atores políticos contra a “democratização incidental” que seria causada pelo novo Código Civil, em 2005.