Como lado humano do futebol ajudou Fluminense a chegar à final da Libertadores


Na primeira e única vez em que chegou à final da Libertadores, em 2008, o Fluminense estava mais do que turbinado pelo dinheiro da Unimed, sua patrocinadora à época. Após o fim da parceria, o Tricolor mudou suas apostas para driblar os problemas financeiros e voltar à decisão da competição neste sábado (4), às 17h, contra o Boca Juniors, no Maracanã.

Antes mesmo da gestão Mario Bittencourt, que intensificou a ideia no futebol profissional e na base, em Xerém, o clube já tinha essa filosofia. A chegada de Fernando Diniz dobrou a aposta do Fluminense no lado humano da bola.

Depois de alguns anos de dificuldades mais graves nas finanças, o Tricolor está longe de ter modificado seu panorama administrativo, mas consegue formar times competitivos mesmo com menos dinheiro que seus concorrentes.

Um levantamento do ge.globo mostra que quase a metade dos clubes da Série A do futebol brasileiro gastaram mais nas janelas de transferências de 2023 do que o Fluminense… para montar todo seu elenco. O arquirrival Flamengo gastou quase 10 vezes mais e amargou um vice-campeonato no Estadual e tem remotíssimas chances de títulos na temporada.

Mesmo com menos dinheiro, Fluminense goleou o Flamengo na decisão e conquistou o bicampeonato carioca em 2023 - Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC
Mesmo com menos dinheiro, Fluminense goleou o Flamengo por 4 a 1 na final e conquistou o bi do Campeonato Carioca em 2023   – Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC

Pessoas que apostam em pessoas são alicerces do Fluminense

Os alicerces estão fora de campo, mas ligados a ele. O diretor Paulo Angioni e o técnico Fernando Diniz corroboram das ideias de Mario Bittencourt, e o Fluminense aposta passou a colocar suas fichas no lado humano. Inclusive com o reforço luxuoso de Fred, ídolo do clube que se aposentou em 2022 e se tornou diretor de planejamento em 2023.

— Relações são fundamentais sempre. Não é só pra ganhar o jogo. Temos que estabecê-las com mais profundidade, mais vínculo. Vai ser sempre um pilar central do meu trabalho — defendeu Fernando Diniz em coletiva após a classificação do Fluminense para a final da Libertadores.

O psicólogo que quer Libertadores como dirigente pelo clube de coração

Aos 76 anos, sendo 44 dedicados ao futebol, Paulo Angioni nunca escondeu ser torcedor do Fluminense. Ele só é mais do que isso. Um profissional respeitado em todo o mundo do futebol, trabalhou por anos nos rivais Flamengo e Vasco, além de Corinthians, Palmeiras, Bahia e outros.

É considerado “mentor” de vários executivos brasileiros. E também de dirigentes como o próprio presidente Mário Bittencourt, que já lhe definiu como “um gênio da profissão”.

Paulo Angioni com Mário Bittencourt em coletiva: presidente do Fluminense vê dirigente como “mentor” no futebol – Foto: Lucas Merçon/Fluminense FC

Avesso aos holofotes, fala pouco com a imprensa, mas é um dos grandes responsáveis pela caminhada do Flu até a final da Libertadores. Em 2020, admitiu em entrevista ao UOL que seu maior desejo era conquistar um título de grande expressão pelo clube de seu coração. Para isso, mais do que a fala calma e o jeito sereno, fez apostas certeiras.

Psicólogo de formação, contratou outro para comandar o clube. Fernando Diniz não só é um dos maiores treinadores de futebol do Brasil, mas também uma das poucas pessoas do mundo da bola que Angioni vê a preocupação cristalina com o ser humano, algo que muito valoriza.

Ao enxergar o futebol como um mecanismo de mudanças mais profundas na sociedade, Angioni, Mário e Diniz fizeram apostas em jogadores dados como “acabados”, mais velhos ou mesmo em jovens tidos como problemáticos. E é com histórias como essas que o Fluminense chega à final da Libertadores.

Se John Kennedy tem sido mais citado recentemente, jogadores como Fábio, Felipe Melo, Ganso e Germán Cano são exemplos de atletas que receberam confiança do trio. Seja por lesões ou pela idade considerada avançada, estiveram fora dos planos de outros clubes com mais recursos. Se encontraram no Fluminense e encontraram no clube uma oportunidade de fazer história.

O presidente ‘boleiro’ à moda antiga, mas de cabeça moderna

Mário Henrique Guimarães Bittencourt assumiu a presidência do Fluminense muito jovem, aos 40 anos, em 2019.

A atuação de Mário no clube começou em 1998, ainda como estagiário do departamento jurídico, mas ficou mais conhecida como advogado do clube, principalmente durante julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) de 2013, que rebaixou a Portuguesa à Série B por descumprir o regulamento do Campeonato Brasileiro.

Mário Bittencourt com Peter Siemsen: presidente do Fluminense começou no clube como estagiário do departamento jurídico em 1998 - Foto: NELSON PEREZ/FLUMINENSE F.C.
Mário Bittencourt com Peter Siemsen: presidente do Fluminense começou no clube como estagiário do departamento jurídico em 1998 – Foto: NELSON PEREZ/FLUMINENSE F.C.

Em seguida, foi vice de futebol do clube na gestão Peter Siemsen. Rompido com o então grupo dominante, a Flusócio, foi candidato de oposição em 2016, mas acabou derrotado por Pedro Abad, da situação. A gestão acabaria caótica e abreviada pelo próprio presidente.

Na eleição antecipada, Mário venceu em uma aliança o ex-presidente da Unimed, Celso Barros, que não durou nem um ano. Em uma conversa com a imprensa naquele ano, o médico elogiou um aspecto do advogado. “Ele entende muito de futebol. De verdade”, disse.

Observado por Pedro Abad, Mário Bittencourt cumprimenta Celso Barros na cerimônia de posse após ser eleito presidente do Fluminense em 2019 - Foto: MAILSON SANTANA/FLUMINENSE FC
Observado por Pedro Abad, Mário Bittencourt cumprimenta Celso Barros na cerimônia de posse após ser eleito presidente do Fluminense em 2019 – Foto: MAILSON SANTANA/FLUMINENSE FC

Essa também é a opinião de ex-atletas, empresários e treinadores ouvidos pela Trivela.

Em entrevista recente ao ge.globo, o diretor de futebol Paulo Angioni fez um comparativo entre Bittencourt e Eurico Miranda.

— Mário é, digamos, mais suave do que o Eurico nas tratativas, ou muito mais suave. E, por toda essa competência que ele tem, eu já falei para ele que é hoje, para mim, no meu conceito, a maior liderança do futebol brasileiro. É uma pessoa que agrega o conhecimento de futebol a um lastro conhecimento jurídico que eu acho que ninguém tem no Brasil — opinou o dirigente, do alto de seus 76 anos.

Esse lado “boleiro” também é visto nas atitudes. É normal ver o presidente no vestiário, em vitórias ou derrotas, ao lado dos jogadores. Costuma ser carinhoso com eles e criar laços de amizade, como aconteceu com o hoje diretor de planejamento Fred, ídolo do clube. A postura gera críticas da oposição. Mas agrada no futebol.

Com relação próxima aos atletas, Mário Bittencourt conseguiu criar reputação respeitável como dirigente. É parte da “família” formada no clube, mas não se posiciona como chefe dela. Diz verdades difíceis a credores e mantém ótima relação com os funcionários. O presidente, que já recebeu convites para a política tradicional, é respeitado pelos seus pares em outros clubes.

Mário Bittencourt com uma camisa preta, de luto pela pandemia: presidente do Fluminense foi principal voz contra a volta do futebol na pandemia entre os cartolas brasileiros Foto: LUCAS MERÇON / FLUMINENSE F.C
Presidente do Fluminense, Mário Bittencourt foi principal voz contra a volta do futebol na pandemia entre os cartolas brasileiros – Foto: LUCAS MERÇON / FLUMINENSE F.C

De posicionamentos progressistas, Mário Bittencourt foi a voz mais contundente dentre os presidentes de clubes de futebol no Brasil durante a pandemia. Antagonizou com cartolas como Rodolfo Landim e Rubens Lopes, com quem hoje mantém boas relações após chegar a ir à Justiça contra o retorno açodado do futebol.

— Uma coisa que nos incomoda muito é que a liberação do futebol não veio de maneira espontânea no RJ. Alguns clubes e autoridades pediram a volta enquanto a pandemia avançava de maneira brutal. E não é crível que o futebol retorne às atividades ignorando protocolos mundiais. Em nenhum lugar do mundo, o futebol voltou antes de 40 dias após o pico da pandemia. O Fluminense se mantém contra o retorno do futebol por entender que não há segurança das decisões no estado do Rio — opinou, em entrevista ao UOL, em 2020.

O treinador com ligação diferente com o Fluminense

A última das pontas a se juntar entre o trio que comanda o futebol do Fluminense desde 2022 é Fernando Diniz. O treinador foi jogador do clube por três anos, disputou 107 jogos, marcou sete gols e foi campeão estadual em 2002, ano do centenário do clube.

Ainda em seus tempos de atleta, Diniz sempre afirmou que o Flu era o grande clube com quem mais se identificou. Não à toa, seu filho mais velho, Diego, é torcedor apaixonado pelo clube.

Filho de Fernando Diniz é torcedor do Fluminense e se emocionou em despedida de Fred - Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC
Filho de Fernando Diniz é torcedor do Fluminense e se emocionou em despedida de Fred – Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC

Em 2019, mesmo nas derrotas, Fernando Diniz recebia aplausos. Em um confronto contra o seu São Paulo, no Morumbi, já no segundo turno, por exemplo, ouviu o setor visitante gritar seu nome após a vitória do Flu por 2 a 0. Deixou o clube com rusgas com Celso Barros, mas elogios a Mário Bittencourt.

— Eu procuro focar em quem remava junto. Mário Bittencourt remou junto. Pagou em 60 dias três meses de salário. É um cara que deseja melhorar as condições do clube, não tem vaidade pessoal. Torço para que dê certo. Não saio magoado com Celso. Absolutamente. Só fico magoado com quem eu gosto e com quem gosta de mim. Então, não sinto nada. Absolutamente nada — destacou.

Mário Bittencourt e Fernando Diniz com a taça do Campeonato Carioca em 2023: presidente e treinador do Fluminense têm ideias em comum de futebol e vida - Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC
Mário Bittencourt e Fernando Diniz com a taça do Campeonato Carioca em 2023: presidente e treinador do Fluminense têm ideias em comum de futebol e vida – Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC

A boa relação com os dirigentes seguiu. Amigo pessoal de Paulo Angioni desde os tempos de jogador, Diniz admitiu recentemente ter enviado uma mensagem para Mário Bittencourt afirmando que “sentia que faltava algo a ser resolvido” entre ele e o clube.

— Quando saí daqui, senti que uma hora ia acabar voltando e voltei. Sinto que estou construindo uma história cada vez mais bonita — contou.

Tanto que também partiu de Fernando Diniz a vontade de dividir o cargo da Seleção, um grande sonho, com o Fluminense. O clube que lhe abriu as portas e lhe deu liberdade não só de jogo, mas de filosofia de trabalho, tem espaço reservado em seu coração.

Funcionários e atletas ouvidos pela reportagem afirmam que Diniz é “a melhor pessoa que conheceram no futebol”. É comum que o treinador, que ouve seu nome ser gritado nas arquibancadas a todo jogo antes mesmo de ter conquistado qualquer taça, receba elogios públicos de jogadores, colegas e torcedores. Uma relação diferente.

— Difícil explicar. É uma conexão muito forte que a torcida tem com esse time. Isso faz com o que o Fluminense viva esse momento positivo de uma força adicional para seguir adiante e fazer um grande jogo na final, dia 4 de novembro — afirmou, em entrevista à Conmebol.

Se vencer a final contra o Boca Juniors no sábado (4), às 17h (de Brasília) no Maracanã, o Fluminense de Fernando Diniz, Mário Bittencourt e Paulo Angioni conquistará a Libertadores pela primeira vez. Isso seria impossível sem o lado humano do clube.


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