Deep fake: As controversas relações entre a morte e as tecnologias


Em meados de 2013, artistas de diversos segmentos musicais homenagearam o cantor e compositor Renato Russo, que já era falecido. No evento, houve apresentação do próprio músico, por meio de uso de tecnologia holográfica. A holografia simula a imagem de uma pessoa em três dimensões, resultando em uma aparição videográfica que, em alguns momentos, parece ser a aparição real da pessoa. O show foi no estádio Mané Garrincha, em Brasília, no Distrito Federal, e teve uma audiência de cerca de 45 mil pessoas. Na época, muitos fãs de Renato Russo se deslocaram de áreas distantes do país para ver a apresentação.

O evento foi notícia em nível nacional, e, entre uma publicação e outra, a imagem eletrônica do cantor foi categorizada como de quatro dimensões: altura, largura, comprimento e saudade [1]. Tal era o desejo do público de ver o objeto técnico com a aparência do cantor. 

Já em meados de 2023, a Volkswagen lançou uma peça publicitária em forma de videoclipe, em comemoração aos 70 anos da instalação da empresa no Brasil. A estrela era Elis Regina, falecida em 1982, interpretando, com a filha Maria Rita, a canção Como nossos pais, de Belchior. Enquanto o vídeo, que foi construído com o suporte de inteligência artificial (IA), era exibido nas plataformas digitais como propaganda automática, circularam na internet mensagens questionando os usos dessas tecnologias para simular ações e comportamentos de pessoas falecidas.

Reconstrução artificial de Elis Regina em propaganda da Volkswagen (Reprodução)
Reconstrução artificial de Elis Regina em propaganda da Volkswagen (Reprodução)

A peça publicitária da empresa automobilística foi rotulada pela mídia de “deep fake“. Deep fake é uma ação intencional com o uso de inteligência artificial para modificar imagem, áudio ou vídeo, fazendo com que o destinatário tenha o objeto falsificado como se fosse verdadeiro. As tecnologias utilizadas em deep fake são variadas, a depender da finalidade de criação de um objeto técnico, como, por exemplo, usar visão computacional para reconhecer uma pessoa, utilizar sistemas de conversação computacional para estabelecer diálogo com um interlocutor humano, usar software de edição de vídeo para sincronizar movimentos labiais e expressões gestuais de uma pessoa com um áudio, que pode não ser o da voz da pessoa apresentada na mídia.

É preciso ressaltar que a apropriação de imagens de personalidades falecidas para simular ações, com o uso de tecnologias, como se as pessoas estivessem vivas não é recente. Que dizer da badalada apresentação holográfica de Michael Jackson, com a música Slave to the Rhythm [2], do álbum XSCAPE, depois de o cantor pop estar morto? Ou mesmo da aparição de Whitney Houston [3], em dueto com Christina Aguilera, que resultou em pedido de suspensão de compartilhamento do vídeo na internet porque, segundo os detentores dos direitos de imagem de Houston, a técnica holográfica utilizada ainda precisava de melhoria? E os covers, que usam tecnologias sofisticadas para simular imagem, voz e gestos dos ídolos mortos?

Quanto ao termo deep fake, ele é bastante associado a situações negativas, que oferecem risco às pessoas, aos grupos sociais e mesmo à estabilidade de sistemas democráticos. Os benefícios de se fazer alterações em vídeos, imagens, áudios e textos por meio de tecnologias de inteligência artificial acabam sendo sublimados. A inteligência artificial pode simular objetos e pessoas para realizar ações educacionais, fazer atendimento comercial e administrativo on-line e até mesmo mobilizar as emoções das pessoas para que lembrem dos momentos marcantes com os entes queridos. 

O quão interessante não seria, por exemplo, realizar uma atividade didática em que personalidades históricas como Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa discutissem com Dom Pedro I o controverso processo de independência do Brasil? Isto com a mediação de um educador que conhecesse de História do Brasil e soubesse identificar as especificidades de objetos de inteligência artificial para uso pedagógico.

É necessário ressaltar que as polêmicas sobre usos de tecnologias para simular aparições de pessoas mortas continuarão existindo, pois, quando o morto é celebridade, é também uma fonte para se ganhar dinheiro. Seja em uma peça publicitária ou na organização de um evento para homenagear a pessoa morta, o interesse financeiro é um dos elementos de relevância na criação midiática.

E quanto aos cidadãos e consumidores submersos nessas situações controversas? Não há dúvida de que uma outra educação é necessária, tanto para quem deseja mobilizar o sentimento de saudade ocasionado pela falta de uma pessoa amada, quanto para quem deseja não se deixar enganar pelos usos de tecnologias para fins não muito claros, afinal de contas, a morte também está submersa nos interesses do capital.

Cleonilton Souza é mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL e doutorando em Educação pela UFBA.

[1] Veja mais em: Renato Russo ‘volta’, em 3D, e canta para 45 mil fãs em Brasília, de 30 jun. 2013. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/06/renato-russo-volta-em-3d-e-canta-para-45-mil-fas-em-brasilia.html.

[2] Veja mais em: Michael Jackson – Slave To The Rhythm, em 13 maio 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=jDRTghGZ7XU.

[3] Veja mais em: Família de Whitney Houston veta exibição de dueto com Christina Aguilera e vídeo vaza na internet, de 20 maio 2016. Disponível em https://www.estadao.com.br/emais/gente/familia-de-whitney-houston-veta-exibicao-de-dueto-com-christina-aguilera-e-video-vaza-na-internet/.


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