Passado, presente e futuro constitucional
Há 35 anos a possibilidade de um dispositivo eletrônico portátil que concentrasse toda sua vida financeira, pessoal e profissional, com a capacidade de conectar a voz e a imagem de indivíduos em lados opostos do mundo, em tempo real, era tratada como ficção científica. Hoje, os celulares moldam não só vários aspectos da vida cotidiana, mas também são elementos de grande influência nas relações jurídicas [1].
Em 35 anos, talvez, a relação do ser humano com a tecnologia pode ser, sob a ótica atual, somente objeto de ficção científica. Todavia, alguns desenvolvimentos atuais já apontam a direção de como essa era interação ocorrerá, e tudo indica que será na forma de neurotecnologias: dispositivos que interagem diretamente com a atividade cerebral do ser humano.
É nesse contexto que o presente texto é pensado: a interseção entre, de um lado, o arcabouço constitucional e as mudanças na jurisdição constitucional e no direito constitucional positivo e, de outro lado, as discussões sobre os impactos jurídicos da interface entre tecnologia e capacidades mentais do ser humano [2].
Neurotecnologias
O Information Comissioner’s Office (ICO), autoridade regulatória de proteção de dados do Reino Unido, em estudo [3] disponibilizado em 2023, identificou investimentos públicos na ordem de bilhões de reais pelos Estados Unidos e por países da União Europeia em pesquisas sobre neurotecnologias. Esse mesmo documento ainda verificou centenas de patentes concedidas para empresas privadas de tecnologias que interagem diretamente com o cérebro humano. Exemplo de patente recente concedida à pessoa jurídica de direito privado é a tecnologia Biosignal Sensing Device Using Dynamic Selection of Electrodes, da Apple [4], a qual implementa eletrodos no popular fone de ouvido AirPod. Desse modo e através de tecnologia de EEG (eletroencefalograma), o equipamento permitirá a leitura da atividade cerebral do usuário, sendo a patente concedida à empresa pelo órgão responsável dos Estados Unidos, em 20 de julho de 2023.
Chamados de brain-computer interfaces (BCIs) esses dispositivos realizam tarefas que vão desde a coleta de dados neurais, por dos estímulos cerebrais, e a classificação das atividades, até o efetivo processamento desses dados, empregando comandos para outros equipamentos. Os BCIs podem ser invasivos, com a inserção sensores dentro da pele, próximos ao cérebro humano, ou não invasivos, cujos sensores ficam fora da pele [5]. Suas utilizações se observam na saúde, permitindo a reabilitação de funções motoras e sensoriais, porém o emprego para usos militares, educacionais e, principalmente, entretenimento é possível [6].
Esse breve contexto indica que o futuro da relação com a tecnologia será no nível das atividades cognitivas, flexibilizando a barreira entre dispositivos e o corpo humano.
Neurodireitos
Discussões acerca dos possíveis impactos jurídicos dessas tecnologias levaram o Chile a aprovar, em 2021, a inclusão expressa no texto constitucional [7] do reconhecimento de neurodireitos: direitos fundamentais que protegem a atividade cerebral contra riscos e danos de tecnologias [8]. Por sua vez, a Suprema Corte do Chile, em 2023, decidiu a primeira causa envolvendo neurotecnologias [9] em processo contra a empresa Emotiv. Foi objeto de judicialização a comercialização do dispositivo Insight no país, sob o argumento de que a empresa viola a disposição constitucional sobre neurodireitos [10] e a Ley n° 19.628, a qual também trata do tema.
Essas questões não passam desapercebidas no Brasil.
Nesse contexto, há a Proposta de Emenda n° 29 de 2023, a qual busca a inserção, no artigo 5° do inciso LXXX, do seguinte direito fundamental: “o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei” [11]. Destacamos a justificativa do senador Randolfe Rodrigues para a proposição:
“Como se vê, trata-se de evoluções tecnológicas e científicas que vão além da proteção de dados pessoais já inserida dentre os direitos fundamentais de nossa Constituição, pois dizem respeito à própria integridade psíquica e física do ser humano — são verdadeiros neurodireitos. São mudanças que naturalmente reverberam na ordem jurídica e nos direitos humanos, tornando essencial a expansão da compreensão jurídica e normativa da dignidade humana nesse novo contexto digital, a fim de garantir que, ao se reconhecer o existente dinamismo tecno-social com o sujeito humano, o desenvolvimento científico e tecnológico se dê a serviço da pessoa humana e com respeito à vida, à igualdade e à liberdade” [12].
Além de se verificar sugestões de mudanças do texto constitucional brasileiro, o assunto começa a ser debatido no âmbito da jurisdição constitucional. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.962/RJ, o voto vencido do ministro Nunes Marques reflete sobre os neurodireitos, os quais buscam “evitar que novas tecnologias que aumentam a capacidade cerebral possam constituir-se em bens privados com valor econômico, porquanto isso poderia implicar a criação de castas de super-humanos”[13].
Desigualdade e justiça social na era digital
A literatura especializada está atenta não apenas para a criação de super-humanos, preocupando-se também com a possível destruição dos núcleos essenciais da igualdade e da justiça social. Em primeiro lugar, não é factível efetivar a justiça social em uma sociedade radicalmente desigual. De outro lado, a sociedade contemporânea caminha a passos largos para o aprofundamento da desigualdade estrutural com a ausência de democratização suficiente e adequada dos benefícios da tecnologia. Nesse sentido, “significará que algumas pessoas desfrutarão de uma vida física muito maior e habilidades cognitivas do que outros, então alguns dirão que são mais ‘livres’ do que aqueles ainda limitados pelos limites do corpo humano” [14].
O tema da desigualdade infelizmente não é novo, existindo determinações no Estado constitucional brasileiro contemporâneo de promoção de uma sociedade livre, justa e solidária, precisando promover o bem de todos, segundo o artigo 4º, I e IV, CF/88. Esses objetivos da República Federativa do Brasil podem ficar ainda mais distantes sem ações coordenadas e planejamento do poder público para compreender e lidar com as novas formas de opressão, que também são permeadas por uso inadequado da tecnologia ou por dificuldades de acessos a equipamentos e à tecnologia.
Dilemas para o Direito Constitucional e para a Constituição de 1988
Dessa forma, no campo da ciência constitucional, existem três desafios claros. A teoria constitucional deve refletir com profundidade acerca da sociedade, da pessoa e do Estado na era da informação, reafirmando os valores e os princípios do constitucionalismo em novo contexto. Não bastam somente os desenvolvimentos da filosofia constitucional, necessitando essas análises relacionarem-se com a revisitação dos instrumentos e da estrutura da dogmática do direito constitucional e fornecendo aos juristas mecanismos efetivos para lidar com os dilemas da tecnologia. Por fim, a jurisdição constitucional, o parlamento e a administração pública precisam estar substancialmente comprometidos com a democracia constitucional na era digital. Nesta semana, por exemplo, aconteceu o IV Simpósio Internacional de Constitucionalismo Digital, o qual foi promovido pelo IDP, PUC-RS e Universidade de Granada, sendo pautado exatamente nesses três eixos.
A Constituição Federal de 1988, a qual completará no próximo mês 35 anos, promoveu mudanças estruturais na sociedade brasileira e na concretização do Estado Democrático de Direito. O desenho constitucional atual deve reconhecer as alterações tecnológicas por meio da interpretação constitucional, do Poder Reformador, da atuação do legislador ordinário e da administração pública, possuindo como missão preservar as conquistas, porém com atenção às novas demandas como os neurodireitos.
[1] O texto de 7 de janeiro de 2023 nessa mesma coluna aborda, por exemplo, discussões sobre o direito à privacidade na era digital. Ver ROBL FILHO, Ilton Norberto. Intimidade e vida privada: passado, presente e futuro. Observatório Constitucional. CONJUR. 7 de jan de 2023. Acesso em: 13 de set de 2023.
[2] Esse foi o tema de dissertação de mestrado do autor Alisson Possa, cuja banca de defesa contou com o professor Ilton Norberto Robl Filho, defendida em 2022. Em breve, o trabalho será publicado, na versão revista, autalizada e ampliada, em formato de livro pela editora Lumen Iuris.
[5] STEYRL, David et al. On similarities and differences of invasive and non-invasive electrical brain signals in brain-computer interfacing. Journal of Biomedical Science and Engineering, [S.L], v. 9, n. 08, p. 393, 2016.
[6] REINO UNIDO, 2023, p. 13-17
[7] “Art. 19: El desarrollo científico y tecnológico estará al servicio de las personas y se llevará a cabo con respeto a la vida y a la integridad física y psíquica. La ley regulará los requisitos, condiciones y restricciones para su utilización en las personas, debiendo resguardar especialmente la actividad cerebral, así como la información proveniente de ella”
[8] Existem várias críticas sobre como esse debate ocorreu e o conteúdo de possíveis novos direitos fundamentais para essas proteções. Ver BUBLITZ, Jan-Christoph. Novel Neurorights: From Nonsense to Substance. Neuroethics, [S.L], v. 15, n. 1, p. 1-15, 2022.
[9] CHILE. Suprema Corte. Sentencia em Rol nº 105065-2023. Santiago, Chile, 09 de agosto de 2023.
[10] “Nº1 – El desarrollo científico y tecnológico estará al servicio de las personas y se llevará a cabo con respeto a la vida y a la integridad física y psíquica. La ley regulará los requisitos, condiciones y restricciones para su utilización en las personas, debiendo resguardar especialmente la actividad cerebral, así como la información proveniente de ella”
[12] BRASIL, op cit, p. 3
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5.962/RJ. Voto do Ministro Nunes Marques, Julgado em 25/02/2021, p. 10.
[14] SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford Press, 2018, p. 363, tradução livre.