
No Brasil do século 18, as artes eram consideradas coisa menor pelos portugueses, que, por isso, as entregaram aos negros. Ensinados, no início, por alguns padres que, sem saber, formaram alguns gênios, nossos primeiros artistas viam na música, nas artes visuais, literárias e cênicas a oportunidade de comprar alforrias, de empreender um ofício.
O ouro e os diamantes de Minas Gerais geraram músicos e artistas de grande talento, numa ambição de beleza que a fortuna não cria por si mesma. Foi assim que se deu o encontro das artes com a educação, muito antes das escolas.
Quando o ouro rareou, o compositor, instrumentista e professor Salvador José, o “Pardo”, desceu de Minas para o Rio. Desconhecemos quem foi seu mestre, mas sabemos que ele ensinou música a José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), um menino genial, neto de duas mulheres escravizadas e seus senhores, músico profissional desde os nove anos, cantor, instrumentista, regente, que se tornaria padre e o maior compositor fora da Europa em seu tempo.
Quando a família real chegou ao Brasil, foi a ele que Dom João recorreu para satisfazer sua paixão pela música. José Maurício criou, em sua própria casa, a primeira escola de música no Brasil: gratuita, ela acolheu inúmeros meninos pobres. Lá estudou o compositor de nosso hino nacional, Francisco Manuel da Silva, fundador do Conservatório do Rio de Janeiro, onde orientou Carlos Gomes (1836-1896), que brilhou pelo mundo afora e morreu em Belém, onde iria dirigir o Conservatório de Música da cidade.
O Conservatório do Rio tornou-se a Escola de Música da UFRJ, onde gerações de compositores e intérpretes exerceram o compromisso com a educação de novos músicos —e a educação pela música.
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) é conhecido por sua obra magnífica e imensa e pela ambição de ensinar música, notadamente nas escolas públicas. Sua estratégia era usar o instrumento universal, a voz humana, mas de forma coletiva: o canto orfeônico, o coral.
É verdade que ele fez milhares de professores e crianças se apresentarem em manifestações fascistoides durante a ditadura sangrenta de Getúlio Vargas. Mas alguns dos maiores artistas da época também acreditavam que era possível modernizar o Estado brasileiro mesmo sem compromissos democráticos. Villa-Lobos não era o defensor mais ardoroso do ditador, e, além disso, tinha o maior e mais inclusivo projeto: educar pela música.
E essa discussão ainda é boa: então a música pode contribuir para a educação? Respondo que, em especial na democracia, pode —e deve. Argumentos conhecidos continuam válidos, e alguns devem ser atualizados. Vejamos os iniciais.
Música é vivência racional-emocional-física indissociável, argumento potente numa educação que, quase sempre, ensina as disciplinas de maneira estanque e secciona o indivíduo. Música é realização coletiva e colaborativa num mundo competitivo. Cantar e tocar, e mesmo ouvir música juntos, é uma atividade agregadora poderosa.
Fazer música envolve o permanente risco de errar, assim como envolve distintas compreensões. As escolas precisam de experiências com muitas respostas possíveis além de “certo” e “errado”, em que se aprenda a conviver com o erro na busca de soluções.
Música é uma arte concreta, no sentido de não abstrata. Abstratas são as palavras, as imagens, as representações que, por um acordo social, atribuem a palavra “elefante” a um certo animal; essa palavra, em outros idiomas, não representa nada. Mas um choro de Pixinguinha e uma sinfonia de Beethoven não estão no lugar de qualquer outra coisa; são o que são.
Ao tocarem nossas emoções, elas despertarão em cada um de nós uma percepção direta, não representativa. As letras de nossas canções favoritas são potencializadas pela música que habitam.
Nas escolas são ensinadas linguagens para as representações. Palavras, números, fórmulas. E sabemos como são precárias as métricas, as sentenças, as soluções. Tanto que as ciências criaram, e seguem criando, métodos para aperfeiçoá-las. Há décadas, pesquisas apontam que muitas crianças não compreendem o que leem, inclusive a formulação de problemas matemáticos! A vida não cabe no que se pode representar.
Sobrecarregados por mensagens que exaltam o consumo, estudantes deveriam encontrar oportunidades de ampliação de repertórios que semeassem neles uma vivência encarnada de saber duvidar, questionar. A cultura que importa não é erudita ou popular: é a cultura da escolha.
Educadores devem ter músicos e artistas como aliados, muito mais do que economistas e sociólogos, que têm dominado as conversas. A escola é o lugar da música e das artes, o maior palco que a humanidade já engendrou, e onde está a maior plateia. No Brasil, sempre soubemos disso.