Em meio a uma floresta, museu exibe carros relacionados a fatos da vida social, política e cultural do Brasil desde o fim do século XIX


Em meio à loucura dos anos 1920, o magnata Henrique Lage se apaixonou pela mezzo-soprano italiana Gabriella Besanzoni após vê-la em uma apresentação. Casou-se com ela, levando-a para morar no palacete do atual Parque Lage, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio. Um dos presentes dados à cantora foi um Isotta Fraschini, carro importado da Itália e símbolo de (muito) luxo naquela época. A história de amor é contada em uma das salas do Carde – Arte Design Museu, instituição em Campos do Jordão (SP) que busca contar a história do Brasil por meio de automóveis e será aberta ao público no próximo sábado, dia 28, com ingressos entre R$ 120 e R$ 160.

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O Carde reúne 102 carros com a proposta de rememorar fatos históricos que permeiam a vida social, política e cultural do país desde o fim do século XIX por meio dos automóveis que vinham chegando ao Brasil (e que depois passaram até a ser montados aqui mesmo).

Os carros integram um acervo de 500 automóveis, adquirido pela empresária e filantropa Lia Maria Aguiar. Parte deles pertencia a Og Pozzoli, morto em 2017 e um dos mais conhecidos colecionadores de carros antigos do país.

— Nosso desafio era tornar o museu atrativo para o público que não é apaixonado pelo automotivo, e fazemos isso com a junção de arte e educação. A ideia era realmente transformar o Carde em uma ferramenta de ensino também — afirma Luiz Goshima, diretor-executivo do museu.

Isotta Fraschini que Gabriella Besanzoni ganhou de Henrique Lage — Foto: Divulgação/Daniela Magario
Isotta Fraschini que Gabriella Besanzoni ganhou de Henrique Lage — Foto: Divulgação/Daniela Magario

Gigantismo

O museu está localizado em meio a uma floresta de araucárias, a cerca de 170 km de São Paulo. O prédio, de seis mil metros quadrados, reforça logo à distância o gigantismo do qual o cenógrafo Gringo Cardia, responsável pelo design do Carde, se diz apaixonado.

— Como os objetos em exposição são grandes (os carros), o cenário tinha que ser maior ainda. Na verdade, coisas gigantes são do que gosto mais; quero ultrapassar os limites. Não queria uma televisão de LED atrás de um carro, mas a parede inteira — conta ele sobre o projeto. — Digo que consegui fazer o MoMA dos carros, um museu bem acabado. Fizemos aqui coisas que as pessoas geralmente não esperam em um museu sobre o ambiente automotivo, com arte popular, entre outras coisas.

O primeiro plano do museu é dividido em salas temáticas, cada qual relacionada a um período histórico. Uma delas conta com o Lincoln K (1938) encomendado pelo ex-governador de São Paulo Ademar de Barros, e que serviu de carro oficial durante visitas do então presidente Getúlio Vargas, da rainha Elizabeth II e do papa João Paulo II. Na área sobre a década de 1950, há referências a Juscelino Kubitschek, que incentivou a indústria automotiva no país, além de alusões a Brasília. Nas salas, os carros são vistos no mesmo espaço de exposição de obras de Candido Portinari, Di Cavalcanti, Djanira, Heitor dos Prazeres, Vik Muniz e Yutaka Toyota.

Um Brasinca Uirapuru “voando” sobre uma planta feita com crochê — Foto: Divulgação/Daniela Magario
Um Brasinca Uirapuru “voando” sobre uma planta feita com crochê — Foto: Divulgação/Daniela Magario

Discussão ambiental

Historiadora e professora da UFMG responsável pela pesquisa bibliográfica e documental, Heloisa Murgel Starling afirma que toda pessoa tem uma história envolvendo um carro, sobre algum momento marcante de sua vida — ela, por exemplo, recorda as vezes em que saía à noite para passear com o de seu pai. Vida privada à parte, de acordo com a especialista, o mesmo acontece com os fatos históricos relacionados ao país.

— Nunca estudei sobre carros, no máximo andava neles. Mas ao pegar a relação de todos os carros, comecei a estudar não os automóveis, mas os proprietários, contextos históricos. Tudo isso abre caminhos — diz a pesquisadora. — Esse museu nos convida a refletir sobre a História, abrir as janelas e deixar o vento do pensamento entrar, para que possamos questionar qual é o nosso projeto de futuro.

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No segundo plano do museu há um salão com fileiras e mais fileiras de modelos de Ferrari, Porsche, Lamborghini e outras marcas de luxo. Outra atração vistosa é o clássico Cord L-29 Cabriolet, que começou a ser produzido em 1929 e teve apenas 5.010 exemplares vendidos ao longo de quatro anos. E há ainda um protótipo do McLaren Senna GTR, que homenageia o tricampeão mundial de Fórmula 1.

Cardia afirma que o fato de o museu estar instalado em uma área verde preservada é um tônico para a discussão que contrapõe a tecnologia, representada pelos carros, à consciência ambiental. Para aprofundar o debate, ele convidou indígenas para que refletissem o impacto dos automóveis ao meio ambiente. “Nem morto”, chegou a ouvir. Mas, depois, recebeu uma resposta positiva.

Logo ao entrar no museu, o visitante observa um colorido Brasinca Uirapuru “voando” sobre uma planta feita com crochê. A escultura é de Rudá Jenipapo, do povo tradicional do Ceará.

— É uma responsabilidade muito grande contar um pouco da história de seu povo dentro de um museu automotivo, um setor que tanto destruiu a natureza para a extração da borracha, petróleo para a gasolina. Como ia encarar isso? — questiona Rudá. — Essa obra representa o despertar de um olhar que pode-se garantir um mundo melhor, de se relacionar com o ecossistema.

Goshima afirma que a temática da consciência ambiental é identificada como essencial para o projeto.

— Brinco que esses automóveis estão aposentados, eles já poluíram bastante. Agora eles são senhores cujo papel é contar histórias. Temos um público que, em parte, é muito apaixonado pelo setor automotivo, por óbvio, mas a ideia é mostrar para a outra parte que o Carde não trata apenas de carros. Até porque agora esses veículos estão com a bola de ferro na roda e cumprem uma função educativa — diz ele.

Alan Souza viajou a convite do Carde


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