Pelo Telefone é considerado por muitos o primeiro samba a ser gravado no Brasil. Fruto de uma composição coletiva, ele foi registrado por Ernesto dos Santos, o Donga, em 1916. A prática do samba remonta ao contexto histórico do fim do século 19 e teve de percorrer um longo caminho para deixar de ser vista como um delito e passar a ser considerada uma profissão no país.
“Não tem como a gente entender a cidade do Rio de Janeiro sem entender a formação do samba”, declara o historiador Vinicius Natal, doutor em antropologia e um dos curadores da exposição Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou. A mostra estreia no Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo, neste sábado (28).
Com fotografias, documentos, gravações, filmes, obras de arte e matérias jornalísticas, o espaço reúne 380 itens e busca reconstituir a cena cultural em que o samba foi criado, no início do século 20. “O samba foi formado a partir do processo do pós-abolição; a partir das famílias de africanos escravizados e depois libertos que encontraram no samba um modo de vida, um modo de se encontrar no mundo, uma visão de pertencimento”, explica Natal.
Um dos símbolos de resistência cultural da herança afro-diaspórica não só no Rio de Janeiro como no Brasil é o Cais do Valongo, por onde a exposição se inicia. Desativado e aterrado a partir das reformas urbanas que se iniciaram no século seguinte, o cais foi encontrado nas escavações do Porto Maravilha em 2011.
Desde 2017, ele é reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, tendo sido um dos principais portos de entrada de escravizados da história. O local faz parte da Pequena África histórica, região que era habitada por uma grande população afrodescendente e por imigrantes judeus, italianos e ciganos.
O termo “Pequena África” foi cunhado pelo compositor Heitor dos Prazeres como uma referência à Zona Portuária da cidade. Seu elemento central era a antiga Praça Onze, que foi demolida na década de 1940 para construção da Avenida Presidente Vargas. “Ele se transformou num ponto de encontro e de trocas culturais onde o samba se fortaleceu como essa potência da cidade do Rio de Janeiro.”
No século 19, cerca de 1 milhão de africanos entraram na cidade pelo cais. De diversas etnias e culturas, essas pessoas precisavam se reinventar em território brasileiro – e um dos principais pilares desse processo foi o samba.
O modelo de Pequena África se expandiu pelo Rio de Janeiro conforme o trem e a malha urbana se desenvolveram na cidade, levando os sambistas a se interiorizarem. No trajeto cotidiano entre a casa e o trabalho, o samba no trem foi instaurado como um momento de divertimento, impulsionado em 1920 por Paulo da Portela, o fundador da Portela.
No final do século, a prática passaria a fazer parte do calendário da cidade por meio do projeto Pagode do Trem, pensado por Marquinhos de Oswaldo Cruz, na década de 1990.
Como fruto das reuniões no centro da cidade, surgiram diversos artistas, entre eles o grupo Oito Batutas, formado em 1919 a partir do convite de Isaac Frankel. Após assistir a uma apresentação de Donga e Pixinguinha no Carnaval, o gerente do Palais pediu que a dupla se juntasse a outros seis músicos para estrear em apresentações no cinema carioca.
A fama do grupo na década de 1920 os levou a uma turnê em Paris, onde tiveram contato com bandas de jazz norte-americanas. “Eles também estavam antenados com o que o mundo estava pensando nessa época, pensavam sua própria ideia de modernidade a partir da sua experiência”, analisa Vinicius Natal. A viagem ocorreu no mesmo ano da Semana de Arte Moderna de 1922.
Laços comunitários
Para existir, o samba se pautou em redes de sociabilidade que foram fundamentais para a preservação dessa cultura até os dias de hoje, como as Casas de Angu, Casas de Candomblé e os quintais das tias baianas. Mulheres negras e, em geral, mais velhas, as tias eram cozinheiras, quituteiras e rezadeiras que chegaram da Bahia em meados do século 19 e que, com o tempo, se tornaram cada vez mais importantes para as escolas de samba.
Um dos quintais mais conhecidos foi o da Tia Ciata, espaço onde sambistas, jongueiros, macumbeiros e demais praticantes da música negra se reuniam para cerimônias e trocas culturais. “O principal lugar para você pesquisar samba é na casa dos sambistas, porque é lá que está a maior parte da memória. Essa memória vai se acumulando, com fotografias, faixas, troféus”, relata Natal.
A Tia Dodô, que foi porta-bandeira da Portela, guardava diversos objetos em sua casa no Morro da Previdência, nomeada por ela como “museu do pobre”. “Se a gente for pegar os arquivos públicos do Brasil, não tem nenhuma coleção pública exclusiva de samba, e o samba tem uma capilaridade gigantesca, você tem escolas em todos os estados do Brasil”, reforça o curador.
As redes de sociabilidade eram também uma estratégia de resistência a uma ideia do samba como prática criminosa. Em um Império que se aproximava da Proclamação da República e com a escravidão recém-abolida, mecanismos legais de controle foram criados para coibir os espaços de troca cultural de pessoas negras, a exemplo da Lei da Vadiagem.
Promulgada dois anos após a Lei Áurea, em 1890, ela determinava que uma pessoa que estivesse andando na rua e não conseguisse comprovar estar trabalhando poderia cumprir uma pena de até 30 dias. Por consequência, o batuque em praça pública era considerado crime, levando o samba e a capoeira a um status marginalizado.
“A própria população começa a criar mecanismos de burlar essas leis para que a prática do samba continue existindo”, relata o historiadot. Apesar de hoje não haver uma repressão como a de antigamente, Natal acredita que no senso comum o samba ainda é visto como algo promíscuo. “A visão colonial de que a cultura negra é menor e atrasada permanece na sociedade, acho que é por isso também que a exposição [do IMS] é importante.”
A mostra ainda conta com recursos de acessibilidade, como vídeo de apresentação em Libras, legendado e com audiodescrição, além de descrição dos espaços e objetos, pranchas em relevo e tradução poética de músicas.
Exposição: Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou
- Quando: de 28 de outubro de 2023 a 21 de abril de 2024. Terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h
- Onde: IMS Paulista (Avenida Paulista, nº 2424)
- Entrada gratuita