O ano de 2023 marca os 50 anos do nascimento da cultura hip hop. Identificado como um estilo de vida e como uma filosofia que abrange a expressão criativa das populações historicamente marginalizadas, o hip hop engloba não apenas o rap – gênero musical que reúne DJ’s e MC’s – mas também a arte e a dança de rua.
Com um importante papel na expressão de identidades e trazendo um pensamento questionador sobre contradições sociais, o hip hop finca suas raízes nas ruas. Este lugar possibilitou, a partir das festas, batalhas de dança e rima, pinturas de grafite e pixo, assim como outras expressões artísticas e culturais, a denúncia do racismo, da desigualdade, da violência, da pobreza e da injustiça.
O rapper, compositor e produtor Thaíde, que começou sua carreira na década de 1980 em São Paulo, afirmou que falar do hip hop é falar de vida e de respeito.
“Falar do hip hop é falar da vida né. Falar de salvação, falar de inteligência, de comunhão, de respeito. Falar de hip hop é falar de tudo que é bom e que a sociedade fascista não gosta. Então eu serei hip hop até depois da morte. Quer queira ou não”, afirma.
Os rappers Rincon Sapiência e Thaíde se encontraram no camarim durante a entrevista / Marcelo Cruz / Brasil de Fato
Com elementos que remontam expressões de identidades culturais afro-americanas e latinas, o hip hop oferece tanto uma maneira de se conectar com essas raízes, quanto de comunicar histórias e transmitir mensagens das experiências afrodiaspóricas, rompendo resistências que se opõem à cultura marginal.
É o que defende a cantora e compositora Linn da Quebrada, que conversou com o Brasil de Fato durante o espetáculo “Hip Hop aos 50 anos” que homenageou a cultura hip hop no palco do Sesc Pinheiros em São Paulo. O espetáculo fez parte da programação do 13 º Encontro Estéticas das Periferias, que realiza atividades artísticas e culturais pelas bordas da metrópole paulistana.
“Eu não escolhi resistir. Eu sinto que inclusive o hip hop, a comunidade negra, os movimentos que as comunidades negras, indígenas, brasileiras e afro diaspóricas têm feito não só na música, não necessariamente elas partem pela resistência. Quando eu entro em atrito e em contato com algo que eu não me percebo resistente, que eu percebo a necessidade de me flexibilizar diante delas, que isso me faz adaptável. Eu diria inclusive que eu não faço uma música resistente, de resistência. Eu faço e produzo uma música e uma arte flexíveis, adaptáveis. E é isso que faz com que ela, de alguma maneira, se sobressaia à resistência do sistema”.
Linn da Quebrada afirma que ela produz uma música e uma arte flexível que faz com que ela se sobressaia à resistência do sistema / Marcelo Cruz / Brasil de Fato
Rincon Sapiência, rapper e poeta, enxerga a cultura hip hop como um estilo de vida que conecta as pessoas às questões sociais e raciais, potencializando pensamentos que questionam a forma como as relações são construídas na sociedade.
“Além dos quatro elementos da cultura hip hop, se instituiu um estilo de vida. Então quando você se conecta ao hip hop você se liga em questões raciais, sociais, você passa a ser mais contestador, você passa a querer se atentar e questionar mais as coisas. Você passa a se comportar diferente e esse comportar diferente é o oposto do que a gente foi condicionado a se comportar e pensar. Então todo esse estilo, que parece só um jeitão marrento de ser, na verdade tem todo um contexto que surge nas quebradas onde a gente foi condicionado a não ter uma auto estima legal”
Para Rincon, os elementos da cultura hip hop estão em um movimento de expansão na cultura brasileira e é possível identificar sua presença em diversos estilos e produções artísticas e culturais, inclusive de outros gêneros.
“Eu acho que o hip hop se tornou algo que tá para além dos adeptos do hip hop. Então eu vejo muitos signos de outros estilos musicais que tem a ver com o hip hop. Eu vejo muito o estilo de cabelo, de roupa, de pessoas que às vezes não consomem hip hop mas de alguma forma estão conectadas. Então eu acho que o hip hop se instituiu de fato na cultura brasileira também”.
Entretanto, o rapper defende que a cultura hip hop esteja conectada às suas raízes para que essa expansão não faça a cultura se perder.
“Então eu vejo tudo conectado ao hip hop e o que a gente não pode perder é a base. Porque aí o hip hop começa a se tornar muito amplo e outros gêneros, outros segmentos começam a usufruir desses elementos, desses signos do hip hop. Então se não existir uma base sólida de hip hop essas coisas se perdem”.
Nascido no bairro do Bronx, em Nova York, no ano de 1973, o hip hop ecoa vozes de comunidades às quais os direitos sociais foram negados enquanto a violência sempre foi apresentada.
O produtor cultural Adriano José, que também há 15 anos organiza a Feira Preta em São Paulo, conta um pouco como se deu o surgimento da cultura hip hop nos Estados Unidos na década de 70.
“A cultura hip hop ela, originalmente, nasce na cidade de Nova York, especificamente no Bronx, através de festa de rua, que é as block parties, com dois irmãos de descendência jamaicana, que eram os DJ’s. E ela conseguiu, a cultura hip hop, naquele momento, captar uma efervescência cultural muito importante, sobretudo no combate à violência. E essa cultura se espalhou e se transformou em uma plataforma de arte, cultura e vida, principalmente, pra todas as pessoas que dela resolvem participar e fazer parte”.
Adriano aponta a importância do hip hop, como uma arte, estar ocupando os melhores espaços que são destinados às artes. Para ele o hip hop é uma narrativa de possibilidade, uma potência que permite que os sujeitos acreditem em si mesmos.
“Estar aqui [no Sesc Pompeia] é muito representativo. Estar em palco, um palco italiano. Provar que o hip hop, que é uma cultura produzida nas periferias, sobretudo pelas pessoas pretas, pode estar em todos os espaços, principalmente nesses em que a gente tem uma estrutura digna. O hip hop traz pra a gente uma narrativa de possibilidade e de potência, em acreditar em nós mesmos. Isso pra mim é o principal recado, novidade e anunciação que o hip hop traz”.
O produtor cultural Adriano José, que organizou o Encontro Estéticas das Periferias, defende que “o hip hop traz uma narrativa de possibilidade e de potência, em acreditar em nós mesmos” / Marcelo Cruz / Brasil de Fato
Para Linn da Quebrada, manter viva a memória daquelas e daqueles sujeitos que construíram e constroem a cultura hip hop durante os seus 50 anos – e 40 no Brasil – é essencial para que a cultura siga viva e sem esquecimentos.
“Eu acho que eu sinto pela memória. Quando a gente tem um marco civilizatório, um marco memorial e imemorial como esse, a gente volta, lembrando também dos 50 anos. Quem foram as pessoas, quais foram as músicas, que palavras foram ditas, que caminhos foram feitos? E a partir disso eu sinto que é possível entender como a gente chegou até aqui. E como a gente se mantém viva. E como a gente faz pra se lembrar de não esquecer”.
“O que nós estamos produzindo é um bem cultural imensurável. Eu sinto que esse é o nosso tesouro”, defende a cantora.
Adriano José acredita que o hip hop é composto pelas pessoas, portanto ele defende que a cultura tem uma longa história para trilhar pela frente.
“50 anos, a gente pode dizer que o hip hop é um cinquentão. Um cinquentão muito bem vivido, que se orgulha principalmente da sua origem e do seu percurso. O hip hop terá mais 50 anos, terá mais 150 anos porque o hip hop são as pessoas”.
Edição: Rodrigo Gomes