Há dez anos, conhecíamos nas telas do cinema o sistema operacional Samantha. Intuitivo e sensível, ele também tinha um gênero marcado: o feminino. Na trama de “Her”, filme de Spike Jonze, lançado em 2013, acompanhamos como a ferramenta virtual deixa de ser apenas um sistema operacional revolucionário e se transforma na namorada do solitário Theodore. Muita coisa mudou desde o lançamento do filme, e, mesmo que as assistentes virtuais ainda não sejam como Samantha, elas compartilham algo muito significativo com ela: têm vozes femininas. Algumas gigantes da tecnologia, como Google e Apple, até dizem que as ferramentas não têm gênero, mas a percepção dos usuários é outra: elas são entendidas como mulheres.
A própria opção por vozes e personalidades que se assemelham àquilo que acreditamos serem características femininas não acontece por acaso. São fruto de escolhas mercadológicas e muitos testes. Até mesmo a ciência já buscou entender o tema. Um estudo publicado em 2017 por pesquisadores da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, demonstrou que usuários de smartphones, tanto homens quanto mulheres, preferem assistentes virtuais com vozes femininas. O relatório, porém, demonstrou que a preferência não é válida para todos os temas, já que os entrevistados preferiam ouvir vozes masculinas quando buscavam sobre questões relacionadas à tecnologia e computadores, por exemplo. Mas, se o assunto era “amor”, “relacionamentos” ou outros semelhantes, vozes femininas eram as preferidas.
Doutora em comunicação e pesquisadora de gênero, sexualidade e comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dayanne Barreto explica que essa preferência acontece justamente porque os papéis de gênero ainda são muito fortes na sociedade e no imaginário das pessoas, impactando, portanto, aquilo que elas vão identificar como habilidades e papéis femininos e masculinos. “Quando pensamos no desenvolvimento de produtos digitais e plataformas, temos que entender isso como parte dos processos sociais que acontecem. Da mesma forma que as redes sociais e as assistentes virtuais vão mudar a nossa vida e a forma como vemos as coisas, elas também vão no universo, no mundo social, para buscar as características que elas vão utilizar para evitar estranhamento”, pontua. “Nesses casos de assistentes virtuais, se a gente parar para pensar, o que elas queriam passar em termos de emoção e sentimento para as pessoas? Habilidade de organização, elas são gentis. É aquela coisa do acordar de manhã e ter aquela voz amigável te dando bom-dia. Docilidade. E esses são atributos que, socialmente, são reconhecidos como femininos”, acrescenta.
Embora essas escolhas sejam justificadas por testes, pesquisas e por opção dos próprios usuários, Dayanne pontua que elas não deixam de reforçar estereótipos de gênero e preconceitos. “Quando vamos produzir qualquer produto cultural, temos a possibilidade de questionar coisas que são problemáticas, que estigmatizam as pessoas, mas também podemos reforçar esses estereótipos. É isso que acontece com as assistentes virtuais. A mulher fica sendo aquela figura gentil, que resolve as coisas, que organiza. Há um interesse mercadológico nisso, de gerar conforto, mas ao mesmo tempo é algo que reafirma e alimenta esses padrões”, observa.
Além disso, a representação dessas assistentes como mulheres reflete outra questão problemática: a falta de diversidade no mercado tecnológico. Segundo a Unesco, assistentes virtuais são programadas majoritariamente por homens, que representam 90% da força de trabalho na criação de inteligências artificiais. “Estudos mostram que é uma área predominantemente masculina, principalmente em cargos mais altos. Se eu produzo algo, de certa forma, vou carregar um pouco de mim. E não vou dizer que todo homem vai ser necessariamente machista, mas o machismo é algo que está no imaginário, e quem costuma fazer o papel de questionar é quem mais sofre com isso, que são as mulheres”, pontua.
Para a pesquisadora, uma forma de mudar esse cenário é diversificando as equipes. “Uma consultoria de diversidade também pode ajudar a resolver esse problema. Porque, quando produzimos coisas que vão fazer parte do nosso cotidiano, há uma responsabilidade envolvida”, afirma. Dayanne observa ainda que o interessante seria que ferramentas e produtos tecnológicos também ajudassem a combater preconceitos e estereótipos.