O futebol brasileiro mudará a partir de 2025 — só não se sabe para melhor ou pior. Libra e Forte Futebol, grupos formados por dirigentes com a intenção declarada de formar a liga de clubes, caminham separados e podem chegar a um desfecho em que haverá não uma liga de fato, mas blocos que negociarão direitos comerciais relacionados ao Campeonato Brasileiro.
A disputa é intensa nos bastidores e não há sinal de conciliação, o que ameaça levar o futebol nacional a problemas sistêmicos. Tanto o valor a ser arrecadado com a venda da transmissão deve ficar abaixo do potencial quanto a divisão dos recursos entre os clubes tende a desequilibrar.
Nos últimos três meses, o ge ouviu todas as partes envolvidas na história: dirigentes, intermediários, investidores e compradores de direitos. Embora não se manifestem publicamente, existe o temor de que a batalha entre os blocos faça o futebol brasileiro desperdiçar a oportunidade da modernização de sua estrutura.
Propostas bilionárias foram apresentadas por fundos de investimentos, a venda dos direitos de transmissão do Brasileirão pelo ciclo de 2025 a 2030 já começou, e existe um atraso estrutural do Brasil em relação a outros países — as principais nações do futebol mundial organizam seus torneios nacionais por meio de ligas. Este é um momento decisivo e complexo para o mercado brasileiro.
Capítulo 1 — Libra
A Libra se formou a partir da união dos clubes de maior torcida do Brasil — o Flamengo e os clubes paulistas, além de representantes relevantes de outros estados. Dirigentes dessas agremiações foram incentivados a fundar a liga por dois profissionais: Flavio Zveiter e Lawrence Magrath.
Zveiter é advogado desportivo e já presidiu o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Magrath, da área do marketing esportivo, tem passagens recentes pelo marketing do Fluminense e do Maracanã. Ambos fundaram a Codajas Sports Kapital, que deu início ao movimento da liga e assumiu papel na interlocução da Libra.
Recentemente, a Libra dividiu os assuntos em linhas paralelas. Em uma delas, está a negociação da venda de 20% dos direitos comerciais do Brasileirão para um fundo de investimentos dos Emirados Árabes, chamado Mubadala. Eles acenaram com R$ 4,75 bilhões para comprar a participação sobre os resultados financeiros da liga por 50 anos.
Na outra linha, está a venda dos direitos de transmissão. Representada pelo publicitário Silvio Matos, contratado por indicação da Codajas para ser uma espécie de CEO provisório do bloco, a Libra se reuniu mais de uma vez com a Globo e com outros potenciais compradores dos direitos.
Uma das reuniões aconteceu em 14 de agosto, na sede da Globo, em São Paulo. Estiveram nela os presidentes ou diretores-executivos de Flamengo, Palmeiras, São Paulo e Atlético-MG — todos membros da Libra. Na ocasião, os dirigentes apresentaram demandas e ouviram da emissora a primeira proposta pelos direitos de 2025 a 2030 do Brasileirão.
A Globo manifestou o interesse em pagar até R$ 1,7 bilhão anual pelos direitos dos clubes da Série A. Esse dinheiro se divide em duas linhas: R$ 1,1 bilhão pela televisão aberta e pela fechada, Globo e sportv, e até R$ 600 milhões para o pay-per-view, em projeção feita a partir da atual quantidade de assinantes do Premiere.
Os clubes pretendiam que a emissora fizesse uma série de promessas. Eles queriam ter exclusividade na negociação, ou no mínimo preferência, em detrimento do Forte Futebol. Dirigentes pretendiam também que fosse declarada a proporção de 75/25 na disputa entre os blocos. Ou seja, a Globo precisaria dedicar 75% de seu dinheiro para a Libra.
Representantes da Globo pediram uma semana para dar a resposta formal às reivindicações, prazo este adiado por mais uma semana. Ao término dele, a empresa não atendeu a nenhuma das demandas apresentadas pela Libra. A proposta dela se manteve na mesa.
Outras conversas ocorreram desde então. Em 27 de setembro, a Globo se reuniu com o fundo Mubadala, desta vez no Rio de Janeiro, para apresentar o conceito do Premiere — a plataforma de pay-per-view da companhia. A emissora tem interesse em manter o produto.
Na semana passada, em 11 de outubro, a Globo apresentou uma proposta alternativa à Libra. Nela, a emissora se dispõe a pagar R$ 1,1 bilhão anual pelos direitos — televisão aberta, fechada e pay-per-view — apenas dos clubes que integram a Libra.
O recebimento desta nova oferta foi visto internamente, entre os integrantes da Libra, como uma vitória. A estratégia deles consiste em demonstrar para o Forte Futebol que seus direitos de transmissão valem mais. Por mais que a Globo ainda não tenha apresentado formalmente a sua proposta para o Forte, R$ 1,1 bilhão representa a maior parte da verba que a emissora tem para comprar todo o campeonato.
Na outra linha, que envolve o Mubadala, os clubes da Libra estão em espera para decidir o que fazer. O interesse do fundo árabe sempre foi adquirir 20% de todo o Brasileirão, não apenas de parte das equipes, ainda que estas sejam as de maior torcida. Propostas intermediárias chegaram a ser apresentadas, na tentativa de manter Botafogo, Cruzeiro e Vasco no bloco, mas eles saíram, e elas não prosperaram.
O memorando (MOU, na sigla em inglês) que dava exclusividade ao Mubadala para negociar com a Libra expirou. Hoje, teoricamente, os clubes estão livres para assinar com outros investidores. Eles também podem não assinar com ninguém e manter 100% dos direitos consigo.
Capítulo 2 — Forte Futebol
Formado inicialmente como um grupo de resistência aos dirigentes do outro bloco, o Forte Futebol tem as lideranças técnicas de profissionais como Edgar Diniz e Bernardo Ramalho, ambos da Livemode, e Fred Luz, da consultoria Alvarez & Marsal. Eles conduzem reuniões entre cartolas e com terceiros, além de prover informação e inteligência ao grupo.
O Forte se notabilizou desde o princípio, inclusive em público, pela defesa de maior equilíbrio das cotas de transmissão. No modelo dele, Flamengo, Corinthians, Palmeiras e São Paulo ganham proporcionalmente menos e abrem margem para que outros clubes ganhem mais.
Esses investidores propuseram um valor marginalmente superior ao da concorrência, de R$ 4,85 bilhões pelos mesmos 20% dos direitos do Brasileirão por 50 anos. Aqui, também, desde que todos os clubes das Séries A e B estivessem unidos em uma liga. O diferencial decisivo na disputa foi a apresentação de proposta intermediária: os investidores estão dispostos a comprar os direitos apenas dos clubes que integram o Forte por um valor representativo, de R$ 2,3 bilhões.
Após meses de negociações entre advogados, diretores jurídicos e presidentes de clubes, pode-se dizer que o Forte ultrapassou a Libra em relação a esta disputa específica. Já foram feitas antecipações de verbas pela XP Investimentos, que assessora o bloco, e as documentações finais para a conclusão do negócio estão redigidas e aprovadas por representantes de todas as partes.
Assessores do grupo diziam, a princípio, que seria necessária a aprovação prévia do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para que o negócio fosse concretizado. Trata-se de órgão do governo que fiscaliza o mercado e impede práticas anticoncorrenciais. Hoje, a avaliação mudou. Assessores concluíram que a aprovação é desnecessária.
A data para a conclusão do negócio foi estipulada para 31 de outubro. A única pendência para que isto aconteça é a obtenção do dinheiro, por parte dos gestores de investimentos. Serengeti e LCP haviam feito a proposta para a compra, mas elas precisam levantar os recursos.
Essa negociação interessa aos clubes de duas maneiras. Em primeiro lugar, porque dirigentes receberão R$ 2,6 bilhões — o valor aumentou em relação aos R$ 2,3 bilhões inicialmente ofertados —, em contrapartida à venda de 20% dos direitos comerciais do Forte por 50 anos. Em segundo, porque será constituído um veículo que se responsabilizará pela venda desses direitos a emissoras.
O veículo terá um Conselho de Administração composto por sete pessoas: quatro indicadas por membros da primeira divisão, uma por membros da Série B e duas pelos investidores — leia-se: quem financiar Serengeti, LCP e XP, pessoas ou empresas que ainda não foram devidamente apresentadas ao mercado, nem mesmo aos clubes.
Adicionalmente, os investidores nomearão os representantes comerciais que farão a venda dos direitos de transmissão de 2025 em diante. A Livemode deve ficar com esse papel.
Também houve conversas dos representantes do Forte com executivos da Globo e de outras empresas de mídia, mas elas foram preliminares. Entende-se que a estrutura precisa ser formalizada antes de avançar propriamente sobre a negociação dos direitos. Encontros formais, como os já realizados pela Libra, devem ser marcados para o mês de novembro.
Capítulo 3 — Guerra
A dinâmica entre Libra e Forte se baseia desde o começo na disputa para que um bloco tire membros do outro, com o objetivo de esvaziar o rival. Aconteceu algumas vezes. Sampaio Corrêa e Atlético-MG saíram do Forte e aderiram à Libra. Botafogo, Cruzeiro e Vasco fizeram o oposto.
Líderes do Forte sabem que não há nenhum documento assinado pelos clubes da Libra com o fundo Mubadala. Eles estão livres para trocar a qualquer momento, sem ônus financeiro. O objetivo continua a ser angariar novas adesões, acenando com o dinheiro de seus investidores.
O ponto de interrogação está em quem estaria disposto a mudar. O Flamengo é tido como inacessível pelos articuladores do Forte, pois as fórmulas de distribuição de verbas reduzem a proporção do clube em benefício de adversários. O Atlético-MG também é muito improvável.
Paulistas agem em bloco e constituem uma das maiores forças da Libra. Corinthians, Palmeiras, Santos, São Paulo e Red Bull Bragantino têm ótima relação, entre os próprios presidentes, e todos convivem em harmonia com Reinaldo Carneiro Bastos, presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF). Reuniões entre os cartolas são comumente sediadas na sede da entidade, algo que os une.
O Forte aposta que o Mubadala desistirá do negócio e retirará sua oferta. Assim, dirigentes de clubes da Libra, especialmente aqueles em situação financeira fragilizada, podem assinar com investidores do Forte e integrar o condomínio, sem que necessariamente tenham de aderir ao bloco.
Como o jogo ainda não prosperou pela via do fundo árabe, a Libra passou a concentrar esforços na venda dos direitos de transmissão. Foi para fortalecer a posição na disputa que os clubes se reuniram com a Globo e apresentaram demandas por preferência, até o momento negadas.
Capítulo 4 — Risco de crash
Assessores e investidores de ambos os lados mantêm o discurso de que a liga deve ser unificada, ou seja, Libra e Forte precisam entrar em consenso. Apesar disso, as atitudes demonstradas apontam para um cenário em que não haverá liga, mas blocos comerciais para a venda separada dos direitos do Brasileiro.
Dois riscos são temidos nos bastidores, apesar de não haver manifestação pública. Em primeiro lugar: separados, os grupos farão um faturamento menor do que o potencial para uma liga. Em segundo: que a desigualdade entre os clubes aumente, por mais que haja investidores.
A compreensão desse cenário negativo passa pelo valor dos direitos de transmissão. Recapitulando: a Globo já disse aos dirigentes que tem um cheque anual próximo a R$ 1,7 bilhão, sendo R$ 1,1 bilhão para televisões aberta e fechada e até R$ 600 milhões em projeção para o pay-per-view.
Plataforma | Valor anual |
Aberta e fechada | R$ 1,1 bilhão |
Pay-per-view | Até R$ 600 milhões |
Clubes devem compor o valor com a venda de pacote de partidas para uma empresa de streaming. Na Copa do Brasil, por exemplo, a Globo comprou todos os jogos, mas repassou parte deles para a Amazon. A empresa americana se interessa pelo Brasileirão.
Projeção considerada razoável nos bastidores é de que essa empresa, qualquer que seja, pode pagar R$ 300 milhões pelos direitos de streaming. Somando ao valor projetado pela Globo, os direitos de transmissão do Brasileirão devem gerar R$ 2 bilhões por ano.
Como o dinheiro se divide entre Libra e Forte? A Libra detém as partidas de mandante de Flamengo, Corinthians, Palmeiras e São Paulo, que geram as maiores audiências do país, nos maiores mercados publicitários. Grêmio, Atlético-MG, Bahia e Vitória são clubes de força regional, que contribuem para que a cartela de jogos a ser oferecida para emissoras tenha abrangência nacional.
Já o Forte detém as partidas de seus próprios puxadores de audiência — Botafogo, Fluminense e Vasco; Internacional, Athletico-PR e Fortaleza —, além dos jogos como visitantes de todos os clubes que compõem a Libra. A Lei do Mandante permite que boa parte das partidas de Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras enquanto visitantes seja vendida.
O pacote da Libra tem valor comercial mais alto do que o do Forte. Quanto? Dirigentes da própria Libra acreditam em 75% de tudo o que será gerado. Para que a simulação seja feita com o maior equilíbrio possível, partimos da premissa de 55% para a Libra e 45% para o Forte.
- R$ 2 bilhões
- R$ 1,1 bilhão para a Libra
- R$ 900 milhões para o Forte
A diferença entre os grupos é que, enquanto o Forte está na iminência de assinar com seus investidores e vender 20% de seus direitos pelos próximos 50 anos, a Libra ainda não encontrou um encaixe para o Mubadala, pois o fundo árabe resiste à ideia de comprar só metade.
Já o Forte precisa subtrair a parte dos investidores, que equivale a R$ 180 milhões por ano. Os R$ 720 milhões restantes precisam ser divididos entre todos os seus clubes. Fluminense, Internacional, Vasco, Athletico-PR, Cruzeiro, Botafogo, América-MG, Fortaleza, Goiás, Coritiba e Cuiabá são os que hoje disputam a primeira divisão. Desconsiderando variações, a média é de R$ 65 milhões para cada.
As médias mostram apenas a diferença de valores entre os dois grupos — e o impacto de apenas um grupo vender os direitos para investidores. Na prática, as diferenças tendem a ser maiores, pois os clubes de maior torcida devem ser beneficiados dentro de cada bloco.
Libra | Forte Futebol | |
Clubes na Série A em 2023 | 9 | 11 |
Projeção de faturamento | R$ 1,1 bilhão por ano | R$ 900 milhões por ano |
Valor cedido a investidores | Por ora, não há acordo | R$ 180 milhões por ano |
Valor a ser dividido pelos clubes | R$ 1,1 bilhão por ano | R$ 720 milhões por ano |
Média para cada clube na Série A | R$ 122 milhões | R$ 65 milhões |
A conta pode ficar ainda mais difícil de fechar, pois o Forte Futebol prometeu R$ 1 milhão a cada filiado que estiver na Série C e ainda 15% sobre o valor remanescente para seus membros da Série B.
No curto prazo, clubes do Forte receberão os valores prometidos (veja a tabela abaixo) pelos investidores: 50% já em 2023, 25% em 2024 e 25% em 2025. O dinheiro tende a ser rapidamente consumido por dívidas, custos correntes e contratações de jogadores. Após esse período, não haverá nada a receber dos fundos. Pelo contrário, para compensar o investimento deles, 20% dos direitos de transmissão serão subtraídos por 50 anos.
Em outras palavras, significa dizer que clubes do Forte Futebol terão competitividade financeira com os adversários da Libra por três anos — enquanto forem depositados os pagamentos dos investidores. Nos 47 anos seguintes de contrato, a diferença será significativa.
Clube | Valor prometido por investidores |
Internacional | R$ 218 milhões |
Cruzeiro | R$ 214 milhões |
Fluminense | R$ 213 milhões |
Vasco | R$ 212 milhões |
Athletico-PR | R$ 203 milhões |
Botafogo | R$ 184 milhões |
Coritiba | R$ 159 milhões |
Goiás | R$ 152 milhões |
Fortaleza | R$ 121 milhões |
América-MG | R$ 116 milhões |
Cuiabá | R$ 57 milhões |
Se todos os clubes estivessem embarcando no mesmo negócio, juntos, riscos seriam compartilhados e os ganhos poderiam ser potencializados. Patrocínios para o campeonato poderiam ser negociados — como os naming rights do Brasileirão —, haveria maior poder de barganha na venda dos direitos domésticos, além de melhores perspectivas para direitos de transmissão internacionais e de apostas.
Como a união ainda não aconteceu, caso a divisão persista, não haverá liga. Cada grupo venderá seus direitos de transmissão, enquanto a CBF seguirá responsável por organizar calendário e grade da programação para a transmissão, além de manter propriedades comerciais consigo.
Existem complicações adicionais, como o descasamento de datas e períodos entre os blocos. Se os direitos forem vendidos em momentos diferentes, dificulta o planejamento das empresas de mídia que pretendem comprá-los. Se os ciclos não tiverem a mesma quantidade de anos — os direitos serão vendidos por quatro, cinco, seis anos? —, o problema se agrava com o tempo.
Menos dinheiro para os clubes, menos autonomia sobre o campeonato que disputam. Para piorar, na direção contrária dos discursos adotados até hoje, existirá maior desequilíbrio entre valores e modelos econômicos.