Cultura e agricultura: uma relação pouco percebida


A ciência possui várias faces que exprimem diferentes lados da
curiosidade humana. Isso é evidente na quantidade de material sobre saúde e
tecnologia que é bombardeada nas redes sociais diariamente. Médicos, dentistas
e enfermeiros dão dicas de como viver melhor.  Cientistas da computação e
profissionais do ramo de TI testam os novos “brinquedos” das gigantes de
telefonia e informática. A influência e o mercado são fantásticos, o retorno é
tão alto quanto os likes e seguidores que conseguem.

Apesar disso, poucos se interessam por uma parte da ciência que possibilitou todo esse avanço, a agricultura. Para não parecer que eu esteja puxando brasa à minha sardinha, já que sou engenheiro agrônomo, preciso contar-lhes a história de como os seres humanos criaram o que chamamos hoje de “tempo livre”, agente principal do surgimento de quase toda a tecnologia.

Nos primeiros grupamentos humanos, o tempo era gasto quase que inteiramente na busca pelos recursos primordiais: água e alimento.

Nos primeiros grupamentos humanos, o tempo era gasto quase que
inteiramente na busca pelos recursos primordiais: água e alimento. As primeiras
atividades humanas para a obtenção de alimento envolviam a caça e a coleta,
atividades de baixa produtividade que exigiam muito tempo para pouco retorno.
Entretanto, já nessa época, o homem começou a facilitar as coisas para o início
da agricultura, preocupando-se com as ferramentas de trabalho. Começaram
talhando seixos de rios; depois foram aperfeiçoando as técnicas, poliam as
ferramentas e faziam facas e lanças. Cada melhoria possibilitava uma melhor
interação entre o homem, as plantas e os animais. Nesse meio tempo, com
conhecimento aplicado e ferramentas de pedra, acredita-se que surgiu a
agricultura.

O ser humano, dotado de uma racionalização ausente nos animais, começou a estudar o ciclo da vida. Percebeu que, como eles, as plantas também nasciam, cresciam, multiplicavam-se e morriam. Ademais, podiam interferir nesse ciclo, retirar as plantas que não queriam e fazer nascer as que davam alimento.

Podemos nos divertir com nossos smartphones, tablets e outros brinquedos com nomes estrangeiros sem nos preocupar com o que a terra produzirá amanhã.

Acredita-se que as primeiras produções eram pequenas hortas-pomares,
feitas perto dos locais de descanso. Essas hortas-pomares podiam ser compostas
de diversos cultivos de ciclo curto, como milho, batata-doce, amendoim e
tomate; ou cultivos deciclo longo como banana, cana-de-açúcar, fruta pão,
abacateiro e mangueira. A diversidade de culturas era tão grande quanto a
variedade de plantas disponíveis no ambiente.

Um problema relacionado a tais hortas era a impossibilidade de sedentarização, pois não proviam alimento suficiente para que o ser humano se estabelecesse em um único local, visto que a produção ocorria em pequenos espaços chamados “clareiras” (espaço na floresta onde as árvores rareiam ou faltam por completo). Havia a necessidade de um tipo melhor de agricultura, um tipo que provesse alimento suficiente o ano todo.

Tudo isso só é possível graças à uma pequena porcentagem de pessoas que escolheram se ocupar com a produção do nosso alimento.

Assim nasceu a agricultura de derrubada-queimada, um dos primeiros tipos
de agricultura e que ainda é praticada hoje em algumas regiões da África e
pelos famosos índios Ianomâmis da Amazônia. A área é desmatada, os ramos são
queimados logo antes das chuvas, fornecendo nutrientes pelas cinzas, e então
ocorre a semeadura. O mesmo procedimento é executado ano após ano.

Esse tipo de agricultura possibilitava a sedentarização de
aproximadamente 10 habitantes por quilômetro quadrado. Apesar da baixa
capacidade, já era uma evolução da organização humana em meio às florestas.
Quando a população por quilômetro quadrado era extrapolada, o homem voltava à
vida nômade e buscava novas áreas para recomeçar o ciclo de derrubada-queimada.

Quanto mais tecnologia, maior a possibilidade de sedentarização e menor a necessidade de agricultores. O mesmo ocorreu com a pecuária, a criação de animais. O Egito, por exemplo, foi um país que foi muito ajudado por sua geografia. A disponibilidade de água e a sazonalidade de terras férteis possibilitou o avanço de várias áreas da ciência. Pessoas podiam finalmente pensar em outra coisa além da obtenção de alimento.

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Aqui cabe um parêntese, não estou entrando nos méritos morais de como
essas civilizações utilizavam seus recursos. A tenebrosa história do estudo da
anatomia humana na sociedade egípcia está de testemunha que muitas vezes o
“tempo livre” poderia ser usado de forma melhor. Entretanto, esse
“tempo livre” existiu e existe graças à evolução agrícola.

Hoje podemos nos divertir com nossos smartphones, tablets e outros
brinquedos com nomes estrangeiros sem nos preocupar com o que a terra produzirá
amanhã. Podemos nos dar ao luxo de entrar em uma universidade de medicina e
estudar para curar doenças complexas sem a preocupação de como produzir nosso
arroz e feijão. Tudo isso só é possível graças à uma pequena porcentagem de
pessoas que escolheram se ocupar com a produção do nosso alimento.

Victor Hugo Assis Hoff Brait é engenheiro agrônomo.


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