Antes de os romanos dominarem a Península Itálica a partir do séc. 5 a.C., e se lançarem às conquistas que definiram os rumos da história europeia, uma civilização notável desenvolvimento artístico, urbano e mercantil, marcada por uma visão espiritual da natureza, habitava a região que hoje conhecemos como a Toscana: os etruscos. De um sonho que unia a Etrúria, território de origem de seus antepassados, ao interior paulista, onde nasceu, Humberto Campana vislumbrou um parque com vocação cultural, ecológica e educativa, que há poucos meses começou a ganhar vida. Com abertura marcada para junho de 2024, e uma estimativa de mais cinco anos para que esteja totalmente implementado, o Parque Campana surge nos arredores de Brotas, SP, cidade onde o designer e seu irmão Fernando cresceram, em um sítio de 78 hectares herdado por ambos.
O pilar cultural se apresenta na forma de grandes pavilhões e instalações de arte ao ar livre, oriundos da fervilhante criatividade da dupla. O ambiental surge de um projeto científico de regeneração da flora e da fauna locais (um misto de Mata Atlântica e Cerrado), que vai além da mera preservação – a intenção é fazer do complexo uma plataforma para empresas que buscam investir em iniciativas ESG. E o educativo, por sua vez, une as duas frentes anteriores ao criar programas para espalhar o conhecimento ali desenvolvido, seja para alunos de escolas e universidades parceiras, seja para artesãos da região ou de fora.
Enquanto procura, ao lado da empresária do ramo de sustentabilidade corporativa Denise Chaer, do Estúdio Andara (correalizador do parque), e do diretor científico Gerd Sparovek, os parceiros para viabilizar a empreitada, Humberto banca sozinho a fase inicial. Nesta entrevista exclusiva para a Casa Vogue, ele detalha o que está por trás do Parque Campana, revela ter feito as pazes com o passado e reflete sobre seu novo momento de vida, agora sem a presença do irmão, morto em 2022.
Como nasceu a ideia do Parque Campana?
Meu pai era agrônomo, tivemos um contato muito próximo com a terra, aprendemos a plantar, a cuidar. Desde que herdamos esse sítio em Brotas, falei que a gente tinha que deixar algo para a comunidade da região. Quando veio a pandemia, e busquei abrigo na cidade, eu ainda estava de mal com o meu passado lá. Masterido me salvou daquele momento difícil por que todos passamos. Naquela época, eu tive um sonho de fazer uma ligação entre Brotas e a Itália. Um sonho de fazer as 12 cidades da Etrúria em Brotas. Cada pavilhão simbolizaria uma cidade etrusca. Minha origem é toscana, minha avó nasceu em Luca, meu avô era de Ferrara. E a Itália nos fez conhecidos como designers. Eu já tinha feito um pavilhão antes da pandemia, com bambu. E a ideia era essa, de trabalhar a natureza criando a arquitetura.
Por que esse desejo de deixar algo para Brotas?
O interior de São Paulo virou um deserto agro, não tem nada, pelo menos aquela região. Só cana-de-açúcar, laranja, a cultura do sertanejo universitário, do churrasco e do futebol, tudo o que eu odeio. Daí pensei que precisava fazer alguma coisa para educar pelo menos os filhos desses fazendeiros a ter contato com a beleza. Eu e Fernando tínhamos feito workshops em muitos lugares fora do Brasil, daí falei: “Por que não faço aqui na minha terra, na minha comunidade?” E aí veio: “Por que não fazer um parque?” No início, todo mundo falava que seria um Inhotim, mas não é nada disso. Temos outra pegada, mais simples, de silêncio. Eu vejo o parque como um lugar de cura da alma, da natureza, de proteção dos animais.
Criativamente, você e Fernando sempre recorreram a referências da infância. Eu não imaginava que a sua relação com o passado era difícil. Eu odiava aquela cidade, era um tédio. Eu lembro dos bailes de domingo, aquele silêncio na rua, aquilo me dava uma tristeza muito grande, eu não me sentia parte. Eu tinha poucos amigos, uma alma sensível, delicada, de artista. Isso era mal visto num lugar careta, cristão, italiano. Então eu era um ser esquisito, ficava lendo o dia inteiro, ia muito ao cinema, conversava com as plantas. O Fernando que lembrava disso: quando estudava, eu ia para o jardim de casa e ficava falando, decorando os textos ali. Aquilo me salvou. O jardim da minha casa de Brotas foi feito a seis mãos pelo meu pai, Fernando e eu – era o meu mundo. E aí eu acho que foi necessário eu [sair e] ser alguém para ter uma relação mais amigável com a cidade.
A intenção de um trabalho com foco ambiental já estava lá desde a origem do parque?
A parte ambiental, sim, era um sonho meu e do Fernando preservar aquilo. Não fazer um condomínio de luxo, nada disso. Pensei nos pavilhões, e dali aprofundamos a ideia de fazer um lugar de regeneração da natureza, de preservar, de educar também ambientalmente. No parque não está tudo feito, como na natureza. Lá existe ainda um pouco de Cerrado, um pouco de Mata Atlântica, mas tem um espaço que foi gado, café, que precisa ser regenerado. Leva [pelo menos] cinco anos para as árvores retornarem à natureza, e daí os animais. Oitenta por cento do solo do Brasil é igual ao de Brotas, é possível transportar a tecnologia, a experimentação que realizamos lá para outros lugares do país.
Vocês sempre levantaram algumas bandeiras por meio do trabalho: o reaproveitamento de objetos prontos ou materiais descartados; a capacitação e emancipação de grupos desfavorecidos, em lugar de sua exploração; a preservação e valorização de culturas brasileiras esquecidas ou oprimidas. Dá para chamar Fernando e Humberto Campana de ativistas do design brasileiro?
Acho que não, porque isso nunca foi feito conscientemente, foi intuitivo. Eu não me comprometo com um rótulo que porventura eu possa falhar [em honrar] no futuro, não sei como entrar numa gaveta. Eu quero a liberdade, e a liberdade com consciência, de fazer o bem, de fazer bem feito, de trazer alegria para alguém. Vejo essa questão como uma contaminação espiritual, estou em busca de trazer o sagrado. O que me move é ser generoso. Eu sempre acredito nisto, que quando eu faço alguma coisa, vem em dobro, sabe?
Eu não me comprometo com um rótulo que porventura eu possa falhar [em honrar] no futuro, não sei como entrar numa gaveta. Eu quero a liberdade, e a liberdade com consciência, de fazer o bem, de fazer bem feito, de trazer alegria para alguém.
— Humberto Campana
E o que o parque tem de mais generoso?
[O ato de] compartilhar com o outro a minha vida. Alguém pode pensar “ah, eles ficaram conhecidos, famosos e abandonaram, viraram as costas [para as origens]”. Eu sempre falei da minha cidade mesmo não gostando da minha infância, porque aquilo me deu a possibilidade de ser quem eu sou. Não tinha nada lá, eu e Fernando construíamos os nossos brinquedos com a mão. Tinha um riacho que passava no fundo da minha casa, eu fazia piscinas com pedras, porque meu pai não tinha dinheiro, e nadava lá. Fazia casa em árvore. Então, esse parque, esses pavilhões são memórias do que eu fazia na infância.
Como está sendo esse novo momento do Estúdio Campana, em que agora você é quem responde por tudo? O que já mudou e o que sente que ainda vai mudar?
O que mudou foi a ausência do Fernando. Estou sozinho agora, ainda não aceitei. Houve um momento em que a gente se separou, era uma intimidade muito grande, não estava dando certo. Ele ficava na casa dele, eu meio que abracei o estúdio e ele a carreira solo. Por sorte, a gente conseguiu reatar oito meses antes [de Fernando partir]. O coração, o estômago, a conexão, [tudo] voltou ao que era, e só de saber que ele existia, chegava alegre no estúdio, brincando com todo mundo… [Humberto pausa, emocionado]. Eu sou uma pessoa mais fechada, mais mal-humorada, não sou alguém que relaxa. O Fernando conseguia trazer leveza.
Mas você não deixou de fazer planos, deixou?
Não. Agora, mais do que nunca, quero levar isso para a frente, honrar o Fernando, tudo o que ele criou: pintura, escultura, colagem, aquarela. Eu queria que isso ficasse conhecido, é uma missão preservar a memória dele. Tenho que me manter ativo, porque isso é o que vai me salvar da ausência dele. A gente tem uma ligação muito carnal, e agora parece que um pedaço meu se foi. Minha batalha é para não ir junto.
Você considera que o trabalho de vocês foi capaz de mudar a maneira como o design e a arte são feitos e vistos no Brasil? Dá para se sentir satisfeito?
Sim! Acho que [influenciamos] uma geração toda, não só no Brasil, mas fora. A gente criou uma “escola projetual” [as aspas são do próprio Humberto] nossa. Eu acho que as cadeiras de pelúcia, por exemplo, abriram a cabeça de tanta gente. Hoje eu vejo por aí alguns artistas trabalhando com design narrativo. Vejo o trabalho de alguns jovens bons hoje bebendo na nossa fonte, como eu bebi na do Ingo Maurer, do Niemeyer, do Burle Marx… Eu me reconheço no trabalho de uma geração, na forma de projetar, de respeitar o material, de ressignificar. Hoje se fala de upcycling, a gente fazia isso intuitivamente desde o início. E começamos numa época em que o design minimalista era forte. Eu ia para a Europa e me lembro da primeira conferência para que eu e Fernando fomos chamados, com o Marco Romanelli, o Konstantin Grcic e outros. Eles olhavam para a gente com um sorriso irônico enquanto a gente apresentava móvel feito de carvão, de mangueira de regar jardim… E estamos aí até hoje. Tem espaço para todos!